especial | Estética enigma

especial | Estética enigma
(Foto: Off Cina Fotografia/Acervo MUI.TA)

 

Itamar, a linha que te magnetiza e integra é o novelo negro. A que você espezinha é a padronizada como MPB, talvez outrora inventiva e logo ratificada por quem rejeita o que destoe da mesmice. Apesar de dominar e pinçar miudezas dali, você desacata caciques, papas e doutrinas no teu texto sonoro, verbal e teatral. Tua lábia contundente é matreira. Teus golpes malacos, fintas no caos e tensões na hipnose não se adequam a anseios de representatividade anestesiada, mesmo que brilhosa, numa vitrine qualquer. Você orienta sobre limites e frouxuras de nossas reivindicações e aspirações, zoa embustes mercadológicos e politiqueiros, repica sobre a mediocridade confortável das estéticas previsíveis em nome de uma bandeira. Eta, Ita: salve a confusão que você fertiliza. Teu dilema fundamental: desejar ser compositor popular e permanecer radical nos experimentos do teu cultivo, não se vergando um milímetro a gostos de encomenda. Mantém a convicção criativa num tabuleiro cunhado pelo simplismo lucrativo.

Ei Beleléu, ei Desventura Calvário da Cruz, ei Nego Dito, ei Pretobrás. Ói você réu encarnando tribunais estarrecedores na rua, no palco e no vinil. Ói tu se defendendo sonoro da lei e da turba. “Da canga meu som me abole.” É? O Poder Jurídico da comarca aqui perfaz o tripé institucional da mortandade escravista, com o Econômico e o Médico. E amém. Moendas do terror. E você ali no cerne do desespero, diante de Excelências e Merítissimos, em tretas de arranque com a Luzia ou a Estropício. Desquite? Navalha na liga, no caricatural, fatal, dos estereótipos. Nada mais Brasil que um preto na alça de mira e do martelo do veredito. Se a sogra até alerta que você “talvez seja ladrão”… Justo você, em Londrina73 na tranca do cárcere por portar um gravador emprestado. Resfolega, Itamar, o pânico cotidiano desse país-vala. Swing, susto, sátira, sutileza que estraçalha: tuas formas de lidar com o terror e vulcânico jorrar labirintos.

O Terror em ti, de tão exasperado e recorrente, até graceja. Cômico pra esquivar. É necessidade e gosto? Porém, o burlesco no miolo do pavor e do espanto também risca o rastro da loucura e treme os rombos de psicose. Marca tua, bordar o exagero e o sutil. Arregaça bem com os dois. Aprendiz de feiticeiro, manipula o encantamento e o analítico. Vertigem namorando a Lucidez, costura o transe e o reflexivo. Mais do que carne, conquista os trovões do próprio corpo. Assumpção da subjetividade vibrante e engenhosa. Matéria mandinga a subverter promessas de milagres e calmarias do poder branco. Tua linguagem carpe e floresce entre o lírico, o tétrico, o satírico, o fúnebre, o festivo e o idílico. Grave, magoada estripolia. Eis a constelação do Espírito Itamarino.

Pencas da sensibilidade, reflexão e expressão negras fornecem matéria, tema e ânimo, ou mesmo antecipam formas e dilemas, ao que depois será anunciado e negociado como moderno, performático, transgressor ou como alternativa filosófica e estética pela branquitude. Manancial de agonias, júbilos, conceitos e atos propalados como novidades, pinçados pela mercadologia que forra seus bornais. Ou seja, a extração de força vital é incessante. Há hortas nem sequer sentidas ou compreendidas e já catalogadas como “cultura”. Pois tu segue na seara hostil, Itamar, mal apurado por lentes claras, embaçadas por formação. E pelos óculos escuros também. Não cabe em qualquer fixidez de identidade negra. Demonstra não se tratar apenas de contemplar fragmentação ou cruzamento que con/flua em qualquer intersecção. E sim de trincar representações, as engessadas, as nojentas ou as estampadas como “resistência”, escorrências e caldas vitaminadas que também se empoçam e estagnam, inclusive solicitadas pelos magnatas e pela publicidade. Fundamentado, tu atiça teu tear de fios urdidos no trancelim da música negra, malha que és e que tece, atento a tudo mais que agasalhe ou seja acachapante. Concebe, você, em vocação para a eternidade. Quem tocou contigo diz que se trata, antes de tudo, de compreender tua singular linguagem, teu idioma próprio.

Estuda profundamente o trompete modal e sem vibrato de Miles Davis, o baixo suspensivo do Reggae, a polifonia de Jimi Hendrix e também do Batuque de Tambu com sua polirritmia, os rasqueados caipiras das modas violeiras. Tem arguta compreensão da história do cancioneiro brasileiro e das dragas da indústria fonográfica. Domina técnicas da vanguarda europeia, da música atonal, concreta e dodecafônica. Embebe no pop, no desbunde e nos desaforos metropolitanos. Como Miles, inaugura um modo específico de improvisar, até eliminando notas que fossem pontos de descanso. Mantém apenas tensão e desenrola frases preenchendo, esmiuçando e raiando cada célula. Acende a sensibilidade atinando para as várias camadas sonoras nas matrizes do Batuque e seus voleios, feixes, choques, desafios e louvações. Capta o sentimento calejado, gozador e misterioso do Lamento.

Com a filha Serena, também cantora, falecida em decorrência de um câncer em 2016 (Foto: Fernanda Pereira/Acervo MUI.TA)

“O silêncio ao som ensino.” Eis teu pilar. O estridente te reconhece. O silêncio, ingrediente essencial de tua gamela, retumba, instiga e acaricia. Fissura e suspende o circular rítmico. Sacrilégio desmontar cadências e compassos, num país de incontestável profusão rítmica e num lábio e peito negros como o teu? Faz tua pintura com silêncios coloridos. Pois é assim que tu ressalta o Balanço e celebra o Ritmo. Modela o descompasso, arranha e tonteia andamentos. Não come na mão da primazia harmônica. Reverencia e rapta o Ritmo como chão e voo, até que lhe faz cócegas, belisca e abocanha, imensa a tua sofisticação modulada por contrastes e molhada pelas ondas do rádio, onde você surfa nas linguagens de novelas, almanaques, leituras de cartas e vinhetas de propaganda. Rádio como escola, sacola, atmosfera, meio e sonho. Dali uma palavra oferecida vai entre o incerto e o direcionado.

Carecia encontrar os sóis do silêncio, por isso você domina o Baixo, “o mais percussivo dos melódicos” e vice-versa. Esmiuçado o Reggae, música brasada nas gretas do silêncio, capta as brechas do transe na finca e na levitação que teu instrumento propicia. Nos timbres da suspensão traduz a leveza, o gozo, a farsa e a graça. Espinha dorsal de teu som, a linha mestra do Baixo retoma certa soberania do grave na música negra. Você indaga e devassa o instrumento em sua proposta estética de concisão e de flutuação intrarrítmica. Nos riffs marca e rebuliça, ali sola o grave do tambu. Por vezes propõe ostinatos como veio e imã, para rompê-los em sobressaltos e breques. Fortaleza e malícia, fresteiro e frutífero, o Baixo é o eixo do teu conflito. As cordas ressoam robustas e também planam passarinhas, traçam como uma linha de pipa pesadona em plena ventania, entre aprumo, firulas e cortes rentes no céu, ancorada no carretel e no pulso que segura, desbica, baila, faz a volta e ataca.

Teus coros se espaçam pelas ranhuras e cheiuras do som, angariando os contrastes que manipula sarcástico, centelhando o caos em cada tom e pincelada dos vocais. Coros de feitio bebop por suas barrocas mudanças de direção, recomeços e variações de ímpeto. Uivantes, rascantes, distorcendo a maciez feito guizos nas lâminas das mbiras e abas de djembês. Vocais primos de pedais eletrificados, montando samplers acústicos. É vasto o teu cardápio de engates e dissonâncias. Tu, orelha africana, conhece a veia dos cantos em pergunta-e-resposta e então os contamina sobrepondo jograis envenenados. Os movimentos dos coros afloram como naipes, replicam e instauram modos de percussão, metais e madeiras. Penso em tua ambição de enfim gravar num estúdio com vários canais para multiplicar esferas ruidosas que povoem a colmeia, organizada aos imprevistos de teu mel e ferrão. Há a sujeira da dissonância e a precisa nitidez do que é arranhado, mais a limpidez da tua dicção elegante, dedicada a cada consoante e letra. Porém, se és da banca de batuqueiro e parece ter rodas e cortejos na mente mesmo ao cantar solando, são raras as sílabas longas, a fartura de ondulações, os melismas e alturas da canção estendida, as crescenças arrebatadoras, a rebuscada sinuosidade melódica. Frequentemente é no tom mais baixo que traz a granada e nisso brinda mais uma negação em cumprir papéis que te ditassem. Tu embala e propõe tropicadas, tu aninha e oferece travanques. Na tua musicália, a palavra vibra pelo significado, mas também por sua matéria, física. Capricha nos sentidos abertos entre garganta, dentes e lábios. A carne sonora reforça, dispensa, explode ou confunde o verbo. Tuas folhas vocais têm várias verdices e venenos. Estalos, sussurros, zunidos, britas, silvos, rouquidão e onomatopeias. Xingamentos, dengos e escárnios. Scats de montão.

Nessa modelagem abundante e detalhada, orna as condições pra renca de contradições de cada persona tua, no leque de tuas máscaras e alter egos, ficções de si ainda mais espessas e porosas entre tantas dobras sonoras. Traz os cognomes feito um capoeira que no apelido se defende e se anuncia, e dessa profusão auditiva e cênica voga a concha de espinhos que gera e que recheiam tua zarabatana. Necessários, pois és um cronista do ordinário, das esquinas e também um poeta de revelações. Versa a Meia-Noite repleta de espíritos na frequência de um vão e canta epifanias, clarões repentinos que nos arrebatam. Veste a camisa 10 na linhagem da ironia mordaz, legado ancestral quentinho, aos bocados em tua caminhada. Tua ironia roça e racha todo tipo de temas, gentes e sentimentos. Teus arranjos celebram e contestam autorias originais que reinterpreta. Tu mergulha e garimpa, lambe e detona. Concerta, pinica e glorifica. Saúda questionando. Reverencia observando fendas. Benza Zâmbi quem você homenagear… e que o diga Ataulfo Alves. Como nos vissungos, você desliza e entoa trabalhos, espeta invisíveis e passantes. Cobra multas e destila charadas como quem, devotos a seu modo, cantando desafiam o santo, mangando se este aguentaria aquele trabalho, a detenção ou seus amores, sem que isso diminua a louvação. Ardido, és tu que inverte a própria performance dos Gurufins, as jogatinas e brinquedos funerais, pois no presságio da própria Morte você zomba até mesmo de teu tumor fatal, da colostomia e dos bisturis te varando seis cirurgias à beira da travessia da Luvemba.
Com altivez de Xangô e ziquinzila de Zé Pelintra, atualiza fundamentos da vivência negra no Brasil e nas paisagens atlânticas: Luta, Alegria, Segredo, Ancestralidade, Troca, Opacidade. E o princípio vital do Jogo.

… Porém…

Se é jogo, se vale o percurso e merece tal nome, nada garante vitória ou saída intacta. Sedução e estratégia também são riscos a quem parece bailar desenvolto entre as cartadas e pernadas. O jogo que lega prazeres e invenções também pode esfolar, aleijar, retalhar e sanguessugar. Torturas e muralhas podem permanecer, rígidas ou maleáveis o suficiente para seguir no mando do tabuleiro, aptas a engolir, extenuar ou escantear o que lhes afronta. E na lógica escravista que prevalece, nem todo jogo é troca. Pois então entre nós te volte a gamela cheia, Itamar. Linguagens, aromas e sementes. Clareza, neblinas e faíscas, como no escambo próprio de tua cisma, de tua Estética Enigma.

 

Allan da Rosa, angoleiro e escritor de ficção e teatro. Ensaísta, historiador, mestre e doutor em Educação pela USP.


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