Escatologia

Escatologia
(Foto: Reprodução)

 

Por Lau Deir Borges

(Mariana, Brumadinho, Amazônia…)

quando a derradeira maria-dormideira fechar os braços de folha em torno de si
quando, numa caixa de fósforos, riscar-se a tremeluz do último vaga-lume
quando o pio do pássaro doer como um lamento infantil
e silenciar
quando secar o que resta de flor e mato
e a terra cuspir a raiz fossilizada da apocalíptica rosa
e no frio os desconhecidos animais se desnudarem de penas, pelos e escamas
quando os incômodos insetos,
os peçonhentos, os transmissores, vetores, hospedeiros,
os praguejados bichos e suas sujeiras não mais infestarem casas, ruas, cidades
e quando impedirmos de ciscar e de se empoleirar e degolarmos
as últimas galinhas e frangos e galos
e quando todos os bois forem alvejados e esfolados e sangrarem
no chão de cimento já vermelho e escorregadio das precedentes e enfileiradas mortes
e assim com porcos, perus, cavalos e toda a dignidade animal
e quando sacrificarmos em gula
ao deus que exige holocaustos sem oferenda nem purificação
quando nada mais houver que não seja comercializável
e quando a luz crepuscular das onipresentes caixas de imagens,
em sua atualíssima versão, transmitir o último pôr do sol,
captado acima da mais alta nuvem de pó
quando tudo o que rodear o homem for polido, brilhante, intacto, seguro
e não mais abismos e úmidos e escuros e cavernas
e quando as feridas da terra infeccionarem
ao ponto de só acreditarmos em cura milagrosa
então não haverá milagre
enfim, sós — diremos —,
e, por fim,
sós
estaremos
.

Lau Deir Borges é jornalista e escritor, nascido em Belo Horizonte, residente em Brasília

 

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