“O bolsonarismo está associado ao descontrole das polícias, a semente das milícias no Rio de Janeiro”, afirma Bruno Paes Manso

“O bolsonarismo está associado ao descontrole das polícias, a semente das milícias no Rio de Janeiro”, afirma Bruno Paes Manso
(Foto: Divulgação)

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Um discurso de ordem violenta, o descontrole de armas e de instituições: esses são alguns dos elementos que, para o jornalista Bruno Paes Manso, aproximam o bolsonarismo do sistema de milícias carioca. Doutor em Ciência Política pela USP e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência na mesma instituição, Paes Manso vê um paralelo entre os dois fenômenos, pois, como afirma, “o descontrole de armas veio com o bolsonarismo, o que é muito importante para o fortalecimento da cena criminal”.

Autor, entre outros, de A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro (2020) e A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (2018),  Paes Manso também conversou com a Cult sobre as características da milícia, seu estabelecimento no Rio de Janeiro, a possibilidade de esse modelo chegar à São Paulo e o papel de Bolsonaro e do bolsonarismo diante desse cenário.

Confira a seguir:

Qual a relação do sistema de milícias com a política nacional?
Acho difícil dizer que existe uma relação das milícias, pois elas são um tipo de modelo de negócios criminal muito vinculado aos territórios do Rio de Janeiro, que nasce de seu controle e como reduto de influências. No Rio de Janeiro, as milícias já têm mais de 50% dos territórios, como as pesquisas mostram e falo no meu livro [A república das milícias].

Há ideias que aproximam o governo do presidente com o modelo que existe no Rio de Janeiro, mas não que exista um vínculo direto. No caso das milícias, elas começaram a crescer a partir do momento em que os paramilitares, os milicianos, começaram, no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, a se colocar como um novo modelo para impedir o avanço territorial dos grupos de traficantes para as regiões da zona oeste. Então, eles colocaram-se como uma espécie de defesa comunitária, passaram a controlar o território pelo uso de armas e cobrar uma série de serviços criminais ilegais. Isso foi, de alguma forma, celebrado por políticos do momento e, inclusive, pelo presidente Jair Bolsonaro.

Qual a semelhança com essa proposta que surge na presidência, ou essa intuição, essa ideia de Brasil com Bolsonaro e depois da Nova República? Ele surge como um candidato antissistema, que critica o sistema e as próprias leis da Constituição de 1988 como um impeditivo de alcançar o que ele procura: produzir a ordem que ele espera conseguir produzir. A lei, por exemplo, impede que a polícia entre em guerra contra os bandidos, por isso atrapalha, impede que eles façam a ordem como deveria ser feita, então é um discurso antilegalista.

Ao mesmo tempo, ele usa o discurso da guerra e pinta os inimigos como um entrave para alcançar o seu objetivo, formando sua autoridade a partir do discurso do conflito. No caso dos milicianos no Rio de Janeiro, eles se colocam como uma forma de controle da população pelo tráfico; no caso do bolsonorarismo, os inimigos são outros, como os comunistas, os corruptos, o pessoal da ditadura gay etc. É, portanto, um discurso de ordem violenta, tanto no caso dos milicianos no Rio como no de Bolsonaro na presidência: é um discurso de produção de ordem violenta, contra um sistema que atrapalha que essa ordem seja produzida, e por isso eu uso ele em paralelo, ligando essas duas experiências, a miliciana e o Bolsonaro na presidência.

E você acha possível que esse sistema das milícias seja trazido para São Paulo, que possa funcionar aqui?
Acho que são realidades diferentes. São Paulo tem uma situação muito mais favorável, tanto em decorrência da economia como da própria história política de São Paulo, que é berço dos principais partidos da Nova República, PT, PSDB, e tem raízes bastante fortes com o sindicalismo, com os próprios sindicatos, mesmo com a igreja católica.

Isso faz com que as instituições tenham uma respeitabilidade maior aqui do que aconteceu no Rio de Janeiro, que historicamente tem governos e instituições muito mais populistas, que estabelecem com as comunidades uma relação muito mais clientelista, de troca de benefícios por votos. Já aqui em São Paulo, nos bairros mais pobres, nas periferias, há uma organização de movimentos populares que dão origem aos partidos de esquerda, então há uma organização maior.

E as próprias instituições policiais, em São Paulo, têm uma força muito maior do que as do Rio de Janeiro, que tem um histórico de violação da polícia pelo crime muito mais intenso, até pela força do jogo do bicho lá, que é forte desde os anos 1940 e 1950, e segue muito forte na guerra contra o tráfico de drogas; lá também tem um comércio de armas e fuzis muito forte e um controle territorial muito mais profundo.

Lá, o tráfico é calcado no controle do território. Aqui em São Paulo não, mas há sempre um risco, até pelo discurso do bolsonarismo e o que ele representa. E o que o bolsonarismo vem fazendo e propondo, até agora, é justamente o desmonte da institucionalidade em diversas frentes. Aconteceu isso no caso do desmonte da fiscalização do regulamento de armamentos, pois antes havia a polícia federal que atuava para fiscalizar e controlar a venda de armas, o que simplesmente parou de funcionar. Hoje, há até criminosos comprando armas formalmente, como o membro do PCC que comprou armas, com esse registro de colecionadores e caçadores, usando o nome próprio, tamanha a fragilidade dos controles. Hoje, fuzis são comercializados entre criminosos com muito mais facilidade. E esse descontrole de armas veio com o bolsonarismo, o que é muito importante para o fortalecimento da cena criminal.

Outra coisa é o descontrole das polícias, e o bolsonarismo está muito associado ao descontrole das polícias. E esse descontrole, a fragilização do controle das polícias, foi a semente das milícias no Rio de Janeiro, o que já dá indicações que isso faz parte da mentalidade bolsonarista. Como a proposta do Tarcísio [candidato ao governo de São Paulo] de chegar em São Paulo e tirar as câmeras dos uniformes de policiais, o que é um dos programas de políticas públicas mais bem-sucedidas, pois reduziu a quantidade de mortos pela polícia e a quantidade de policiais mortos durante o trabalho. E apesar de ser um programa feito pelos oficiais da polícia, Tarcísio meio que já ficou com esse compromisso, mas foi forçado a desmentir por causa da pressão que está havendo.

Mas não sabemos o que vai acontecer, porque ele fala sobre isso há muito tempo. O que mostra que, para Tarcísio, pouco importa o controle da polícia por parte do Executivo. Como se a polícia, para ser boa e eficiente, precisasse ser descontrolada e agir por conta própria, em uma guerra descontrolada. Sem falar no desmonte das instituições de uma forma geral, na área da educação, da saúde, como se o Estado fosse um empecilho para o desenvolvimento, e não o ajudasse; como se o Estado fosse uma barreira, como se beneficiasse os amigos e, por isso, tivesse que ser reduzido ao máximo para que tudo fosse guiado a partir da competição e da lei do mais forte do mercado.

Então, o bolsonarismo se caracteriza cada vez mais por esses extremismos e pela visão de que o Estado é o que deve ser destruído. É, portanto, um risco, ainda mais considerando que o crime está cada vez mais sofisticado. Hoje, o tráfico de drogas no Brasil passou a ficar mais forte, o negócio da droga movimenta mais dinheiro, esse dinheiro entra na economia e cada vez entra mais na política, então é tudo muito preocupante, pois é algo que nunca esteve tão forte como hoje. É muito arriscado, precisamos prestar muita atenção, pois são ideologias de Estado mínimo, de descontrole institucional que dão a cara do bolsonarismo.

E com a possível eleição de Tarcísio de Freitas, um bolsonarista, para o Executivo do estado de São Paulo, com propostas como a que você menciona, você acha que devemos aumentar o alerta em relação à implementação do sistema de milícias em São Paulo?
A grande questão é saber se a fragilização do controle das polícias vai ser estabelecida no estado e qual vai ser a relação dos oficiais da polícia com as coisas que o bolsonarismo representa: a fragilização dos controles policiais, o discurso de guerra, de morte, de homicídios.

Um discurso que também costuma ser a semente das milícias, porque, a partir do momento em que os policiais são liberados para matar, como aconteceu no Rio de Janeiro, no Amapá, como vem acontecendo em outros estados – o que São Paulo havia conseguido reduzir –, esses policiais que podem matar passam a ganhar dinheiro com isso e ingressar no crime.

Então, em São Paulo, as características do crime vão ser outras, caso a fragilização aconteça. Mas se corre o risco se os policiais sem controle – com carta branca para matar, valorizados a fazer a guerra – passarem a querer ganhar dinheiro no crime com isso, no mesmo movimento que aconteceu e vem acontecendo em diversos estados. Então é um risco, óbvio, mas é difícil saber o que Tarcísio vai fazer, se ele de fato vai levar adiante esse bolsonarismo destrutivo. Mas sim, é um risco ao qual precisamos ficar atentos, pois se ocorrer esse descontrole, e a polícia aproveitá-lo para ganhar dinheiro, veremos o mesmo que vem acontecendo em outros estados.

E como fica o PCC, aqui em São Paulo, diante dessa ameaça do descontrole das polícias?
O PCC se organiza a partir das prisões e mantém um grau de profissionalismo muito elevado, inclusive entrando na economia formal ao financiar uma série de empresas. Não necessariamente a polícia precisa ou vai agir contra ele. O descontrole policial, caso ocorra, coloca inclusive o risco de associação.

Não estou dizendo que vai acontecer, mas o discurso de fragilização dos controles policiais, que estamos conhecendo melhor com o bolsonarismo, pode estimular parcerias, sociedades. A partir do momento em que se dá carta branca para os policiais serem violentos e usarem os uniformes e as armas com legitimidade para fazer a guerra, eles podem querer dinheiro com isso, enriquecer assim. É um risco presente em todos os estados e, com o PCC, é uma possibilidade de parceria, de participar dos mesmos esquemas, de garantir cobertura, como já aconteceu com diversos policiais ligados ao crime.

Além do desmonte das instituições e desse estado de descontrole, a continuidade de Bolsonaro no poder, a seu ver, pode trazer quais outros perigos?
Acho que o maior risco é o que ele vem pregando há muito tempo, que é justamente criar um governo autocrático, tentar acabar com todos os limites constitucionais do seu poder; como ele próprio vem dizendo e vem sendo discutido, colocar novos ministros no STF associados a ele, para que não seja mais tolhido; ele já conseguiu comprar o Congresso Nacional com o orçamento secreto; produziu uma série de ilegalidades durante essa eleição com a compra de votos, com um dinheiro pra financiar a compra de votos como nunca ocorreu com outros governos em outras eleições; já conseguiu uma série de medidas inconstitucionais, colocadas a seis meses das eleições, que tanto o Congresso aprovou como o STE foi incapaz, diante da pressão e da tensão que existia, de barrar coisas claramente inconstitucionais.

Então ele já vem conseguindo fazer isso. Caso ele ganhe força e as pessoas deem o aval para ele prosseguir, ele próprio já está deixando evidente que vai justamente governar de forma a dominar as instituições que continuam minando o poder dele, o que significa o próprio TSE. Então, não ficam muitas dúvidas que serão tempos de autoritarismo pesado, da ordem inconstitucional permanente. E isso pelo que ele fala, não que seja uma conjectura, é o que ele vem falando há mais de 4 anos.


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