Nise da Silveira: entre a loucura, a rebeldia e a arte

Nise da Silveira: entre a loucura, a rebeldia e a arte
Nise da Silveira, psiquiatra e pioneira da Terapia Ocupacional no Brasil (Foto: Arquivo Nise da Silveira)

 

Nise da Silveira, a psiquiatra e pioneira da Terapia Ocupacional no Brasil, nasceu no dia 15 de fevereiro de 1905, em Maceió, Alagoas. Com apenas 16 anos, mudou-se do estado para cursar a Faculdade de Medicina da Bahia, sendo a única mulher em uma turma de 157 alunos. Em 1926, ela concluiu o curso, apresentando o estudo “Ensaio sobre a criminalidade da mulher no Brasil”, e se casou com um amigo de sala, o médico sanitarista Mario Magalhães. Em 1927, o casal se mudou para o Rio de Janeiro, e Nise começou a atuar como médica, além de escrever uma coluna sobre medicina para o jornal A Manhã. Os artigos também eram reproduzidos no Jornal de Alagoas, onde o pai da psiquiatra fora jornalista e diretor.

Em 1933, Nise foi aprovada em concurso público de Psiquiatra no Serviço de Assistência a Psicopatas e Profilaxia Mental, setor da antiga Divisão de Saúde Mental do Rio de Janeiro. Dali em diante, dedicou sua vida a humanizar o tratamento de pacientes psiquiátricos e se recusou a aplicar neles métodos tradicionais, como o choque elétrico e a lobotomia. Na década de 1940, criou ateliês de desenho e pintura como parte do tratamento de esquizofrênicos e revolucionou a maneira como a sociedade e a medicina deveriam se relacionar com os psicóticos. Ao ser reconhecido pelo pai da Psicologia Analítica, Carl G. Jung, o trabalho de Nise da Silveira obteve alcance internacional.

“Nise tinha uma trajetória política e filosófica antes de encontrar a obra de Jung. Mas ele lhe ensinou o caminho da mitologia e das artes plásticas pensadas em uma chave criativa e clínica que era muito avançada para a época”, explica Christian Ingo Lenz Dunker, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP. “Entre seus gatos e cartas, entre Espinoza e Jung, entre mandalas, pinturas e imagens do inconsciente, Nise sempre recebia os errantes, visionários e candidatos a curadores de almas. Com a mesma benevolência e inquietude de quem sabia que a verdade do homem não pode ser pensada sem sua loucura”, afirma Dunker.

Nise da Silveira, uma das primeiras a falar em desinstitucionalização dos manicômios no Brasil, publicou dez livros e escreveu uma série de artigos científicos que muito contribuíram para os estudos de psiquiatria. Morreu, aos 94 anos de idade, no dia 30 de outubro de 1999. Voraz leitora de Machado de Assis, ela costumava afirmar que seu primeiro contato com a psicologia havia sido travado por meio da obra do escritor, que em algumas narrativas discute a loucura e a vida social.

Em 1992, em entrevista publicada na revista científica Psicologia: Ciência e Profissão, Nise, ao fazer um balanço da sua trajetória profissional, afirmou: “Eu pretendia que o paciente na Terapia Ocupacional tomasse conhecimento com a matéria. E, uma vez, um paciente me mostrou que eu estava no caminho certo, quando me ofereceu um coração em madeira e no centro do coração havia um livro aberto. Quando me ofereceu isso, ele me disse: ‘um livro é muito importante, a ciência é muito importante, mas se ela se desprender do coração, não vale nada’. Tudo que eu sei de psiquiatria aprendi com eles”.

O cárcere político

No Rio de Janeiro, Nise e o marido passaram a frequentar as rodas de artistas e intelectuais e a participar dos circuitos ligados ao marxismo. Entre outros temas, esses encontros marxistas discutiam, principalmente, a situação política que o mundo vivia não somente com o surgimento do nazismo e do fascismo na Europa, como também com a ascensão da Era Vargas (1930-1945) no Brasil.

Em 1934, depois de ser denunciada por uma enfermeira da Divisão de Saúde Mental do Rio de Janeiro por envolvimento com o comunismo, Nise foi presa pela polícia política varguista, liderada por Filinto Müller. A psiquiatra passou 15 meses no presídio Frei Caneca, sofreu diversos tipos de tortura e, quando liberada, em 1936, foi afastada do serviço público e viveu na clandestinidade por oitos anos.

Na prisão, Nise conheceu Graciliano Ramos e outros intelectuais da época que também passaram pelo Frei Caneca, como Olga Benário e Maria Werneck. Em Memórias do cárcere, Graciliano escreve sobre a amiga psiquiatra: “Lamentei ver a minha conterrânea fora do mundo, longe da profissão, do hospital, dos seus queridos loucos. Sabia-se culta e boa. Rachel de Queiroz me afirmara a grandeza moral daquela pessoinha tímida, sempre a esquivar-se, a reduzir-se, como a escusar-se a tomar espaço. O marido também era médico, era o meu velho conhecido Mário Magalhães. Pedi notícias dele: estava em liberdade. E calei-me, num vivo constrangimento”.

“Quando uma das pacientes esquizofrênicas de Nise descobriu que sua ‘doutora’ tinha sido presa por causa da denúncia, esbofeteou a enfermeira delatora”, conta Bernardo Horta, jornalista e autor da biografia Nise – arqueóloga dos mares (Editora Aeroplano), que inspirou o filme Nise – o coração da loucura. “Ela brincava com o episódio, dizendo: ‘o esquizofrênico não é indiferente’”, lembra Horta, que foi amigo pessoal da psiquiatra por vinte anos.

Desde o início de sua carreira, Nise defendia a ideia de que, ao contrário do que se acreditava na época, o esquizofrênico não é um ser hermético e incapaz de demonstrar afeto e conexão com o mundo externo. Com base nos estudos de Jung e na experiência de tortura que viveu na prisão, desenvolveu um tratamento de arte-terapia em que conseguiu provar sua teoria de que o psicótico não é uma pessoa indiferente.

“Ela percebeu [durante o cárcere] que os presos que deixavam de fazer coisas, sucumbiam; já os que se apegavam aos afazeres, por menores que fossem, seguiam adiante. Também percebeu que na medida em que os guardas tiravam roupas e objetos pessoais das pessoas, elas iam perdendo suas identidades. O mesmo ocorria no hospital: quando o paciente, que já estava deslocado da realidade, perdia seus objetos pessoais, sua situação mental piorava. Outra descoberta da prisão foram os gatos que, segundo Nise, não perdiam a liberdade atrás das grades”, conta o cineasta Roberto Berliner, diretor do filme Nise – o coração da loucura.

Na entrevista de 1992, Nise afirmou: “No Hospital, introduzi os animais como ajuda para os doentes, como coterapeutas. Um analista americano, de quem eu tenho um livro, costumava trabalhar com um cão no consultório. Aliás, Freud trabalhava com um cão no consultório; Jung trabalhava com um cão no consultório. Marie Louise Von Franz, com quem eu fiz análise, trabalhava com um cão no consultório. Mas aqui, o cão não entra nos lugares”.

As mandalas e a organização do inconsciente

“Durante esses anos todos que passei afastada, entrou em voga na psiquiatria uma série de tratamentos e medicamentos novos que antes não se usavam. Aquele miserável daquele português, Egas Muniz, que ganhou o prêmio Nobel, tinha inventado a lobotomia. Outras novidades eram o eletrochoque, o choque de insulina e o de cariazol. Fui trabalhar numa enfermaria com um médico inteligente, mas que estava adaptado àquelas inovações. Então me disse:

– A senhora vai aprender as novas técnicas de tratamento. Vamos começar pelo eletrochoque.

Paramos diante da cama de um doente que estava ali para tomar eletrochoque. O psiquiatra apertou o botão e o homem entrou em convulsão. Ele então mandou levar aquele paciente para a enfermaria e pediu que trouxessem outro. Quando o novo paciente ficou pronto para a aplicação do choque, o médico me disse: – Aperte o botão.

E eu respondi: – Não aperto.

Aí começou a rebeldia.” (Nise da Silveira – caminhos de uma psiquiatra rebelde, fotobiografia de Luiz Carlos Mello)

Somente em 1944 é que Nise consegue ser reintegrada ao serviço público. Nesse ano, começa a trabalhar no Hospital Pedro II, antigo Centro Psiquiátrico Nacional do Rio de Janeiro, no Engenho de Dentro, um dos maiores hospícios do Brasil, criado no século 19.

Ao se recusar a seguir o tratamento brutal da época contra os pacientes, Nise foi perseguida pelos médicos do hospital e transferida para o Setor de Terapia Ocupacional do Pedro II, espaço de menor prestígio na instituição.

“A experiência da prisão foi marcante na vida de Nise. Na volta ao trabalho, no Hospital Pedro II, ela viu que os loucos viviam como presos e não aceitou essas condições, nas quais hospital psiquiátrico e cárcere se confundem”, conta Luiz Carlos Mello, ex-aluno de Nise e atual diretor do Museu das Imagens do Inconsciente, criado pela psiquiatra em 1952.

Isolada, Nise propôs um tratamento que desafiava tudo o que se entendia por saúde mental no Brasil, questionando as contradições do sistema psiquiátrico, baseado na exclusão e na violência contra o paciente. “Na época em que ainda vivíamos os manicômios e o silenciamento da loucura, Nise da Silveira soube transformar o Hospital Engenho de Dentro em uma experiência de reconhecimento do engenho interior que é a loucura”, explica Dunker. Depois de ajudar o psiquiatra Fábio Sodré na introdução da Terapia Ocupacional no Hospital Pedro II, Nise criou, em 1946, a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR) do Centro Psiquiátrico Pedro II.

Horta lembra que, por meio das artes plásticas, Nise foi pioneira ao defender que a comunicação com os esquizofrênicos graves só poderia ser estabelecida inicialmente em nível não verbal, daí a importância dos desenhos. “Ao desenvolver, inicialmente, os ateliês de bordado, modelagem, encadernação de livros etc., Nise percebe que os pacientes desenhavam muito no chão e nas paredes. Veio, então, a ideia de criar um ateliê de pintura e modelagem”, conta.

Para implantar o ateliê de pintura, Nise recebeu ajuda do então estagiário Almir Mavignier, que viria a se tornar um dos primeiros pintores abstratos do Brasil e professor de pintura da Escola Superior de Artes Plásticas de Hamburgo.

“Foi nesse momento que houve uma explosão de pinturas, desenhos e esculturas que Nise e a equipe não esperavam. Nise, que já estava lendo Jung, constata aquilo que o psicanalista falava que, se para o neurótico – que seria todos nós, segundo Freud – o tratamento é através da palavra, da Psicanálise, já para o esquizofrênico, a palavra não dá conta. Por isso, a proposta de Jung é que o tratamento do esquizofrênico deve se dar através da imagem”, explica Horta.

Apesar de criada por Nise em 1944, a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação foi oficializada somente em 9 de agosto de 1961, pelo decreto presidencial n. 51.169.

O reconhecimento informal da Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação, contudo, aconteceu rápido: em 1950, o acervo dos ateliês foi mostrado pela primeira vez internacionalmente na “Exposição de Arte Psicopatológica” do I Congresso Internacional de Psiquiatria, em Paris; a segunda exposição viria em 1957, com mostra “A Esquizofrenia em Imagens”, durante o II Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique. Ao chegar na Europa, o acervo da STOR chamou a atenção de Carl Gustav Jung, que conheceu o trabalho de Nise depois de uma carta escrita a ele pela própria, em 1954, em que a psiquiatra pedia ajuda para interpretar a presença recorrente de mandalas entre os desenhos de seus pacientes.

“A configuração de mandala harmoniosa, dentro de um molde rigoroso, denotará intensa mobilização de forças autocurativas para compensar a desordem interna. Então pedi para que fotografassem algumas mandalas e as enviei com uma carta para C. G. Jung, explicando o que se passava. Foi um dos atos mais ousados da minha vida” (Nise da Silveira – caminhos de uma psiquiatra rebelde, fotobiografia de Luiz Carlos Mello).

Jung, mentor e amigo

Em 1954, após passar anos observando seus pacientes desenharem formas circulares no ateliê da STOR, a psiquiatra passa a defender a ideia de que aquelas pinturas não eram semelhantes, mas tinham algo em comum: eram mandalas.

“Os profissionais da equipe de Nise falavam que era impossível os pacientes estarem fazendo mandalas, porque eles não sabiam o que era isso”, conta Horta. “Os pacientes eram pessoas muito humildes e pobres, a maioria analfabeta, e a mandala é uma figura oriental, do sânscrito. Mas Nise afirmava que aqueles desenhos eram mandalas e representavam a fala de Jung, que escreveu que as formas circulares eram a tentativa do esquizofrênico de se reorganizar”, explica.

Segundo Dunker, o suíço Carl Gustav Jung, pai da Psicologia Analítica, foi autor incontornável por perceber a investigação do inconsciente como uma experiência cultural e transcultural. “A Psicologia Analítica ampara-se fortemente no estudo da mitologia, da história das religiões (inclusive orientais) e das narrativas ancestrais, além da existência do inconsciente pessoal, formado pela história de experiências recalcadas do indivíduo, o inconsciente coletivo, receptáculo de experiências universais da experiência humana”, explica.

Contra a vontade de sua equipe, Nise fotografou os desenhos circulares de seus pacientes e mandou o material, junto a uma carta em francês, ao próprio Jung, na Suíça. Meses depois, para a surpresa da psiquiatra, a assessora de Jung enviou uma carta para Nise.

Emygdio de Barros pinta no jardim do hospital Pedro II (Foto: Autor desconhecido/Arquivo Nise da Silveira/Reprodução Itaú Cultural)

“A assessora comenta que Jung ficou muito impressionado com o material, que se surpreendeu ao descobrir que aquele trabalho estava sendo feito em um hospício do subúrbio brasileiro e confirmava que aquelas figuras eram, de fato, mandalas. Jung e Nise, então, passam a se corresponder, e o nome dela começa a ser associado ao do psicanalista internacionalmente”, explica Horta. As cartas trocadas entre os dois viraram documentos históricos e estão expostas no Instituto Junguiano de Zurique.

Em 1957, Jung convidou Nise para passar um ano estudando com ele no Instituto, um dos mais importantes centros de Psicanálise no mundo, e a expor o acervo das pinturas de seus pacientes no II Congresso Internacional de Psiquiatria. A médica aceitou o convite, e o trabalho de Nise ganhou projeção internacional.

Segundo a arte-terapeuta vinculada ao IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa –, Santina Rodrigues de Oliveira, Nise foi precursora do pensamento junguiano no Brasil. “Em Jung, ela encontrou o respaldo teórico necessário para sustentar suas práticas num momento sombrio da psiquiatria, que ainda se utilizava de recursos tenebrosos à época, como o eletrochoque. Nise nunca deu a esse método o nome de arte-terapia, mas suas pesquisas fomentaram e contribuíram para o desenvolvimento dessa abordagem, especialmente no Brasil, entre analistas junguianos”, explica Santina. Segundo Horta, Nise é a única colaboradora latino-americana que aparece nos sites oficiais ligados à obra de Jung.

“Ao contrário de outros junguianos, mas de acordo com Marie Louise Von Kranz, com quem Nise estudou, ela levou o pensamento de Jung adiante, basicamente captando seu ingrediente de invenção clínica articulado com intensa reflexão cultural”, explica Dunker sobre a relação entre Nise e Jung. “Por isso ela não se contentou em praticar leituras hermenêuticas das obras dos pacientes internados, que ela resgatou da condição de asilados crônicos, mas também reintroduziu a mensagem deles em um sistema simbólico específico que é o das artes plásticas, da crítica especializada e do cinema”, afirma.

Nise e o pensamento junguiano no Brasil

Em 1968, sete anos após a morte de Jung, Nise criou o Grupo de Estudos C. G. Jung no Rio de Janeiro, que coordenou até morrer, em 1999.

Horta descobriu o grupo em 1987, por meio de um amigo de faculdade que queria retratar a vida de Nise para seu trabalho de conclusão de curso. “Falavam que a Nise era muito brava e rígida. Então, ficamos com medo, não sabíamos como chegar nela (risos)”, lembra. Os estudantes começaram visitando o Museu de Imagens do Inconsciente e conseguiram um estágio lá. Nessa época, contudo, Nise, que já estava aposentada e debilitada, não ia mais ao lugar. Mas o estágio rendeu o trabalho de conclusão de curso, o que fez a psiquiatra querer conhecer Horta em sua própria casa, um apartamento no Flamengo. A partir de então, Horta começou a frequentar o grupo e anotar tudo o que conversava com Nise. “No começo ela não gostava das anotações e não me deixava fazê-las, mas eu continuava anotando. No final, ela me chamava para contar suas histórias.”

O biógrafo conta que presenciou inúmeras vezes a psiquiatra declarar respeito a Freud, mas afirmava que foi na obra de Jung que encontrou as ferramentas mais adequadas para desenvolver a Terapia Ocupacional no Brasil. “Jung foi discípulo de Freud, mas aconteceu uma cisão e os dois rompem. Existem analistas que afirmam que a relação entre Jung e Freud marcou a Psicanálise moderna. Nise leu e releu as obras de Freud em inglês e espanhol, assim como leu muito também a obra de Jung. Nise era uma devoradora de livros, um gênio, o que a fez conhecer profundamente a obra dos dois para formular a sua.”

Nise se debruçou por anos sobre a diferença entre Freud e Jung no tratamento da esquizofrenia. “Enquanto Freud estudou os esquizofrênicos e afirmou que o lugar de tratamento deles era o divã, Jung observou os esquizofrênicos e afirmou que o tratamento deles deveria se dar por meio da expressão plástica – veja bem, não artística, mas plástica – e o divã deveria ser substituído pelo ateliê. Ao tratar de fato o esquizofrênico e não somente estudá-lo, Nise fez o trabalho de Jung evoluir e aprofundou as ideias dele”, explica o jornalista.

Para Walter Mello Junior, psicanalista e ex-coordenador da Casa das Palmeiras, criada por Nise da Silveira, a psicologia junguiana obteve um impulso a partir da obra da psiquiatra. “Mais que isso, esses estudos ganharam um respaldo metodológico e ético com Nise. Se hoje a psicologia junguiana começa a ganhar força nas universidades, muito se deve ao esforço de Nise, pois alguns de seus colaboradores se tornaram professores universitários, levando esses estudos para os centros acadêmicos, assim como o estudo da obra de Nise da Silveira que, com certeza, permanece ligada à de Jung. Mas podemos afirmar que o trabalho dela possui brilho próprio.”

De todo o convívio com Nise da Silveira, Walter se lembra da vez em que, ao buscar conselhos com a psiquiatra, esta quis conhecer um de seus pacientes. “Atendia a um rapaz que morava perto de Nise. Debati bastante esse acompanhamento com ela. Certo dia, o rapaz me relatou que foi almoçar em um restaurante perto de casa e um homem começou a falar sobre ele, dizendo que ele era um estorvo para a família e lhe deu um tapa no rosto. Quando eu relatava a situação, Nise pediu que convidasse o rapaz para ir na casa dela. O encontro aconteceu no dia seguinte. Ele contou a situação a ela que, imediatamente, o convidou para almoçar no mesmo local onde levara o tapa. Fiquei muito impressionado com o senso de solidariedade”, lembra.

Nise e a artista Adelina Gomes (Foto: Autor desconhecido/Arquivo Nise da Silveira/Reprodução Itaú Cultural)

O legado de Nise

Além dos ateliês de artes da STOR, outro feito da psiquiatra dentro do Setor foi introduzir entre os psicóticos o convívio com gatos e cachorros, a fim de promover a afetividade entre os internos e os animais. Mas uma das maiores contribuições de Nise foi o Museu de Imagens do Inconsciente, criado em 1952 para reunir a rica e complexa iconografia concebida por seus pacientes.

“À medida que as exposições dos trabalhos do STOR foram sendo organizadas e que a experiência foi se tornando conhecida nos meios culturais, Nise se deparou com o problema de acompanhar os pacientes revelados como artistas, lhes oferecer cuidado e cuidar, ao mesmo tempo, de suas obras”, explica a pesquisadora Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, professora do Curso de Terapia Ocupacional da USP. Surgiu, assim, o Museu de Imagens do Inconsciente, com o objetivo de articular os interesses científico, clínico e artístico.

Mais que estabelecer uma relação entre arte e loucura, os ateliês de Nise foram capazes de revelar artistas plásticos talentosos dentre seus pacientes, que chamaram a atenção não somente de pesquisadores de saúde mental e médicos, mas também de críticos de arte. Em entrevista concedida a Edson Passetti na década de 1990, Nise afirmou sobre os trabalhos expostos no Museu de Imagens do Inconsciente: “Se a imagem do processo psicótico tomar uma forma que entendidos de arte possam dizer ‘é bela do ponto de vista artístico’, muito bom. Ótimo. Isso mostra também uma outra coisa que nos agrada muito: que um doente possa fazer algo que tenha um contorno de beleza. Mas nunca uma pessoa me fez a pergunta que eu desejava ouvir: onde estão estes homens e mulheres que fizeram estes trabalhos que estamos agora admirando? Isso eu dizia desde 1949, quando fizemos a primeira exposição no MAM, em São Paulo. Onde estão essas criaturas que conseguiram dar um contorno que um crítico como Léon Degand ou Mário Pedrosa consideram artístico? Eles estão nos tristes lugares que são os hospitais psiquiátricos”.

Segundo Mello, diretor do Museu de Imagens do Inconsciente, o lugar tem um acervo de mais de 360 mil obras e tornou-se a maior e a mais diferenciada coleção desse tipo de arte no mundo. Suas principais coleções foram tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e o acervo pessoal de Nise da Silveira é tombado como Memória do Mundo da UNESCO.

Outro grande feito de Nise foi a fundação do primeiro serviço de egressos psicóticos, a Casa das Palmeiras, aberta em 1956, a primeira instituição que desenvolveu um projeto de desinstitucionalização dos manicômios no Brasil. “Podemos com certeza afirmar que Nise da Silveira foi uma das pioneiras de ideias e ações que compuseram a Reforma Psiquiátrica brasileira”, explica Lima.

Segundo a pesquisadora, Nise afirmava que o hospital psiquiátrico colaborava com a doença e acreditava que caberia à terapêutica ocupacional parte importante na mudança desse ambiente. “Depois, para proporcionar melhores condições de atendimento, Nise e seus colaboradores criaram a Casa das Palmeiras, talvez o primeiro serviço de saúde mental brasileiro substitutivo ao hospital psiquiátrico e instalado no território dentro da cidade, não mais isolado”, afirma. Nise foi, ainda, membro fundadora da Sociedade Internacional de Psicopatologia da Expressão, com sede em Paris.

Para Mello, “o maior legado de Nise foi introduzir o afeto como elemento transformador no tratamento. Até hoje os ateliês de pintura, modelagem e outras atividades continuam a funcionar segundo sua filosofia. Foi a sua coragem e determinação que sustentaram a sua rebeldia para abrir novos caminhos no tratamento e no respeito a esses indivíduos marginalizados pela psiquiatria e pela sociedade”.

O poeta e escritor Marco Lucchesi foi amigo de Nise por quase duas décadas e, da amizade, surgiu o livro Viagem a Florença – Cartas de Nise da Silveira a Marco Lucchesi (Editora Rocco, 2003). O escritor conta que conheceu a obra da psiquiatra ao acaso. “A leitura de Dostoiévski me levou a fazer uma visita a um hospital psiquiátrico. Queria saber como era e qual a medida de tantos horrores. Descubro pouco tempo depois o maravilhoso Imagens do inconsciente, da dra. Nise. Foi uma surpresa que me abalou. Parecia uma nova poética. Uma forma total de humanismo”, conta Lucchesi, que veio a conhecer Nise no enterro de Maria Julieta Drummond de Andrade, em 1987. “Saí do enterro, com a memória de um Drummond totalmente de pedra, imóvel, no abismo de sua dor. Mas Nise foi um sol de fim de tarde, igual a ele, restaurador. Abraçamo-nos, como velhos conhecidos. Saí emocionado e sem dizer palavras”, lembra o escritor. “Nise trabalhou para a paz. Faltou-lhe apenas o Nobel”.

LAÍS MODELLI é ativista, jornalista e mestre em Comunicação Midiática pela UNESP


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