Educação após Bolsonaro

Educação após Bolsonaro
Estudantes e professores protestam na av. Presidente Vargas contra o bloqueio de verbas da educação (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

 

As duas manifestações pela educação em todo o Brasil nas últimas semanas foram absolutamente importantes como demonstração do valor dado pela sociedade à educação pública. Estudantes, pais e professores, pessoas que sabem o valor da educação estiveram presentes. A multidão impressionou a todos. O presidente do Brasil, em uma de suas táticas tradicionais, a do discurso de humilhação que visa desmerecer e desvalorizar pessoas ou ações, tentava apagar o valor do acontecimento atacando os manifestantes com termos tais como “idiotas úteis”. Nunca, na história do Brasil, um líder humilhou tanto seu povo e sem vergonha alguma de fazê-lo. Causou mais uma vez um grande mal estar, mas a essa altura, ninguém, fora os extremamente ingênuos, espera nada de melhor dele ou do ministro da educação que o acompanha nas cenas características do “ridículo político”, a performance estratégica desse governo para desnortear as pessoas em geral e assim implantar as medidas econômicas que visam destruir a economia do país e salvar a economia neoliberal.

Gostaria, diante desse cenário, de colocar algumas questões que fazem parte do pano de fundo a partir do qual podemos entender a importância da educação de um modo geral e principalmente em nosso momento brasileiro, no qual alguns políticos e até mesmo cidadãos falam contra a educação.

Há um texto muito conhecido de Theodor Adorno chamado “Educação após Auschwitz”. Adorno, para quem quiser saber mais, é o filósofo alemão, falecido em 1969, que criou a expressão “indústria cultural” junto de seu companheiro de pesquisa Max Horkheimer. A citação é longa, mas vale a pena ler para seguir com a reflexão.

No texto ele diz o seguinte:

“A exigência de que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. Ela é tão importante que acredito não ser possível, nem necessário, justificá-la. Não consigo entender porque até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso considerando toda a monstruosidade ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não tocou as pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas. Qualquer debate sobre metas educacionais perde significado e importância frente a esse imperativo: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem as condições fundamentais que geram esta regressão. E isto apavora.”

Adorno foi um crítico do sistema capitalista, um dos responsáveis por reunir marxismo e psicanálise no contexto da chamada Escola de Frankfurt. Qual a importância de unir marxismo e psicanálise naquela época, tanto quanto hoje? Para que as pessoas pudessem compreender os jogos de poder das quais são vítimas, jogos de poder que se dão na estrutura da sociedade, por meio das instituições, mas também na estrutura subjetiva das pessoas, por meio da linguagem. A partir dos trabalhos de Adorno, podemos entender o que estamos chamando hoje de “psicopoder”, um poder que passa pelo controle dos corpos e da linguagem, um controle que se estabelece sobre o nível consciente e inconsciente da vida de cada pessoa humana. Um poder que atua sobre emoções e sentimentos.

Em termos simples isso significa que você pode não estar sabendo muito bem o que você pensa e fala, o que você sente e o que você faz, mas os donos do poder, aqueles que se colocam como donos dos meios de manutenção do sistema (econômico, político, judiciário, midiático, religioso) sabem muito bem o que você está pensando e sentindo, falando e fazendo. Porque o poder funciona dessa maneira, como uma espécie de “pathos” sem desejo, uma espécie de força superior contra a qual podemos pouco. Por isso, podemos definir o poder como aquilo que tem a chance de nos capturar, de nos “caçar”, de nos perseguir, de estar sempre à espreita como a morte. O poder é aquilo que nos domina, que nos detém, que nos incomoda, que preside as nossas vidas mesmo quando parece que tudo vai bem. O poder é o limite que temos, e os poderosos são aqueles que “administram” esses limites, muitas vezes ultrapassando limites constitucionais, legais, éticos e democráticos como se eles não tivessem limites. (Muita gente usa a violência como se ela fosse poder. É uma pena, pois o poder poderia até ser uma coisa boa quando usado como ação conjunta em nome de ideias democráticos.)

Dito isso, voltemos à educação como uma instituição chave em todos os processos sociais e na vida de todas as pessoas. A educação não é só o aprendizado formal ou informal que podemos ter na vida, nem é apenas a formação profissional, humana e cultural que conquistamos a partir das nossas experiências em contextos específicos. A educação é a instituição que tem a função ética de produzir esclarecimento na sociedade. Ela faz isso a partir da transmissão do conhecimento produzido pelas ciências (humanas e naturais) e pelas artes. Ora, a crítica é uma forma de conhecimento produzida pela “mãe” de todas as ciências que é a filosofia. A crítica, como capacidade de análise e fundamentação, é o aspecto fundamental transmitido pela educação.

É pela educação que as pessoas se tornam quem elas podem ser. A educação, quando crítica, ou seja, quando é analítica, leva ao desenvolvimento de potências pessoais e coletivas. Na história humana, todos os grupos oprimidos quando perceberam a importância da educação, passaram a reivindicá-la como um direito. As mulheres ao longo da história – aquelas que chamamos de feministas mesmo antes do aparecimento dessa expressão -, exigiam o direito à educação, pois sabiam que a emancipação das mulheres dependia dela.

Na citação acima, Adorno fala de evitarmos Auschwitz acima de tudo. Todos lembram do campo de concentração e extermínio que assassinou mais de um milhão de pessoas. Adorno nos diz que Auschwitz não cessa de se repetir. Auschwitz é, para ele, a metonímia (a parte que explica o todo) como se fosse um momento de culminância de uma lógica, a da barbárie. É certo que Adorno lembrava das guerras, genocídios e matanças que aconteceram para além da Alemanha, em outros lugares do mundo na época em que ele escreve o texto em questão nos anos 1960. E ele nos coloca uma questão filosófica muito séria e que implica ainda mais a exigência sobre a educação: “a barbárie continuará existindo enquanto persistirem as condições fundamentais que geram esta regressão. E isto apavora.”

Quais são as condições gerais que definem a possibilidade da barbárie que gera experiências tão catastróficas quanto Auschwitz? Elas não são diferentes do que gerou o genocídio dos povos que viviam no Brasil antes da invasão europeia, elas não são diferentes do que gera o genocídio dos jovens negros no Brasil atual. Elas não são outras em relação ao feminicídio e à matança de pessoas LGBTQIs pelo mundo afora e, principalmente, infelizmente é preciso dizer, no Brasil. Elas não são diferentes do discurso de ódio que fala contra pessoas que lutam pela educação, que falam contra Paulo Freire, por exemplo. Sabemos que quem luta pela educação, luta para que Aushwitz não se repita.

Podemos dizer que a educação é, na visão daquele filósofo que pesquisou e tentou entender a razão que levou à Auschwitz, a própria luta contra Auschwitz. Essa luta é luta pelo conhecimento, pelo direito à alfabetização, pelo direito de ensinar e de aprender, pela liberdade de expressão e de pensamento dentro de uma perspectiva ética.

Por isso, é evidente que um governo que instaura a barbárie, busque, com todas as suas misérias cognitivas, humilhar e destruir a educação como um todo, da educação básica à universidade, da pesquisa ao decoro que sustenta a civilidade nas redes e na vida civil. Agora é a educação que é a vítima do ódio. É inclusive a educação como sinônimo de respeito pelo próximo, o que se odeia. O ódio ao conhecimento, ao entendimento, à lógica, à lucidez, à crítica, aos professores de filosofia e aos intelectuais, aos agentes da cultura, à ciência e à arte é movido por quem quer destruir a educação, justamente porque, em havendo educação, não haveria espaço para tanto ódio. Não haveria um governo do ódio. O ódio que, porventura, viesse a existir, seria elaborado, trabalhado, compreendido e transformado.

Essa alquimia política ainda é possível, por isso precisamos lutar pela educação contra a barbárie, precisamos sustentar a educação tanto em seu nível institucional quanto em seu nível pessoal e subjetivo no enfrentamento a esse e a qualquer governo que faça do ódio sua miserável força política.

Leia a coluna de Marcia Tiburi quinzenalmente, às quartas, no site da CULT

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