É preciso mergulhar

É preciso mergulhar
Mãe Senhora, Maria Bibiana do Espírito Santo (Foto Mario Cravo Neto / Arte Andreia Freire)

 

“Para os africanos escravizados assim como para os seus descendentes libertos, tanto o Estado colonial português quanto o Brasil – colônia, império e república – têm uma única e idêntica significação: um estado de terror organizado contra eles”, publicou Abdias Nascimento em 1980. Mesmo no período democrático posterior ao ensaio Quilombismo: um conceito científico histórico-social, basta observar os dados de violência ou encarceramento para compreendermos a verdade sintetizada por Abdias. Eu a retomo neste texto, escrito antes do primeiro turno das eleições de 2018, porque, independentemente do resultado das urnas, vivemos um estado de terror há séculos. É evidente que a composição do Legislativo e a do Executivo importa. Mas não podemos perder de vista que o estado de terror contra negras e negros persistirá, em diferentes graus e formatos, aconteça o que acontecer na primeira eleição pós-golpe de 2016. E que, aconteça o que acontecer, o mar revolto de quando escrevo não estará mais calmo com a revista impressa.

Eu nunca mergulhei. Mas li, na carta bonita de uma amiga, que no momento do salto em um mar bravio as ondas batem na cara. Se ficar na superfície, não dá para respirar, muito menos pensar. Que quando estamos em um semimaremoto, o melhor a fazer é colocar a máscara e submergir. Porque, se existir coragem de sair da superfície, as ondas não importunam e tudo é luz, cor, vida. Neste momento turbulento em que estamos, sair da marola eleitoral e do golpe recente para mergulhar com coragem na nossa história talvez permita respirar e enxergar possibilidades para o futuro. E por coragem, compreendo perspectivas não coloniais da nossa história. Falo sobre escavar as ausências e os silêncios a fim de encontrar os tesouros que nos permitam compreender como, apesar de um projeto genocida, somos a maior parte da população brasileira. E em um breve exercício daquilo que podemos encontrar camuflado em arquivos, músicas, práticas, evoco três mulheres negras que precisamos ter como referência.

Esperança Garcia foi uma negra africana escravizada no Brasil do século 18. Em 1770, redigiu, de próprio punho, um documento de denúncia da escravidão e de reivindicação por direitos. Refutando o projeto colonial, resistiu à naturalização de sua condição de escravizada e endereçou seu manifesto ao então governador do Piauí. Vale lembrar que o primeiro censo do país, de 1872, registrava que 82,3% da população brasileira era analfabeta. Como seria então o século anterior? Quando nem mesmo brancos escravocratas dominavam as letras, Esperança lia, escrevia e manipulava o documento escrito como instrumento de reivindicação política.

Rosa Egipcíaca, capturada na Costa da Mina, na África, também foi escravizada no Brasil. Como escrava de ganho, tinha relativa autonomia em relação ao seu tempo, sendo obrigada a entregar determinada quantia mensal a seus senhores. Prostituta, além do que dava aos exploradores, fez dinheiro suficiente para comprar a própria alforria e, mais tarde, uma casa de prostituição. E, o que me soa como tática brilhante, teve uma visão: a própria Virgem Maria a orientou a fundar um convento só para ex-prostitutas negras. E mais: ela deveria aprender a ler e escrever para contar sua vida em um livro. Rosa compra um imóvel no centro do Rio de Janeiro, monta seu convento e escreve um livro de 250 páginas. Infelizmente, não conhecemos o que escreveu. As notícias sobre Rosa vêm dos documentos da Inquisição. Foi levada à corte, em Lisboa, julgada e condenada como bruxa.

Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora, nasceu no Brasil de 1890 e foi a terceira Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador. Sua mãe a precedeu. Sua avó foi fundadora da casa, no século 19. As três descendem de uma família nobre africana Asipá, originária de uma região que hoje compõe Nigéria e Benin. A mulher, que vendia frutas no mercado público, foi a mãe espiritual e a liderança política de centenas de pessoas que espalharam os preceitos do candomblé pelo país. O candomblé, muitas vezes reduzido a religião, é uma complexa e eficaz tecnologia social de preservação da memória e da vida da população negra. Muitas vezes lideradas por mulheres, famílias de santo extrapolaram laços consanguíneos – dilacerados pelo sistema escravista por quase quatro séculos –, constituindo comunidades de partilha material, simbólica e espiritual.

Para Abdias, a chave do nosso futuro estava na compreensão dessa partilha comunhal, que, historicamente, nos permite viver, apesar do permanente estado de terror. “Precisamos e devemos codificar nossa experiência por nós mesmos, sistematizá-la, interpretá-la e tirar desse ato todas as lições teóricas e práticas conforme a perspectiva exclusiva dos interesses das massas negras e de sua respectiva visão de futuro. Esta se apresenta como a tarefa da atual geração afro-brasileira: edificar a ciência histórico-humanista do quilombismo”, escreveu. E por quilombo, como já mencionei exaustivamente em outros textos, não falamos sobre a fuga de escravos, mas, também nas palavras de Abdias, sobre “reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial. Repetimos que a sociedade quilombola representa uma etapa no progresso humano e sociopolítico em termos de igualitarismo econômico.”

A partilha em comunidade, recorrente entre pessoas negras à margem da estrutura econômica do capital, precisa ser constatada como tecnologia social potente, como possibilidade de futuro, não como sintoma da exclusão. O olhar colonizado sobre nossa história nos mantém na superfície, sem respirar, com as ondas batendo na cara. Precisamos do mergulho. Precisamos do quilombo.


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(6) Comentários

  1. Concordo André! Um texto assim nos faz voltar a respirar ar puro, megular no respeito e valor de nossa história. Ovacionar mulheres negras e resgatar a memória de suas lutas, trazê-las de volra para seguirmos lutando. Parabéns pelo lindo texto

  2. Bonito seu ensaio. Mergulhar nas entranhas da história. Aprender a nadar. Respirar em baixo d’água. Reinventar. Vejo muitos quilombos de afetos sociais outros, anticapitalisticos.

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