Dramaturgia e sociedade

Dramaturgia e sociedade
A dramaturgia de Suassuna caracteriza-se por explorar de modo vivo a dimensão histórica da linguagem teatral (Foto: Divulgação)

 

Morto em julho de 2014, Ariano Suassuna integrava o dileto grupo dos escritores que renovaram a dramaturgia brasileira a partir da segunda metade do século 20, fazendo com que o teatro fosse capaz de estabelecer uma poderosa interlocução sociocultural com o país. Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho e Plínio Marcos, lembrados hoje pelo grande público, em maior ou menor escala, apenas como verbetes de uma genérica enciclopédia de cultura brasileira, são alguns dos nomes cujas obras professaram os mesmos ideais de renovação.

Autor de textos muito conhecidos (embora, a rigor, pouco encenados no eixo Rio-São Paulo), como Auto da compadecida (1955), O casamento suspeitoso (1957), O santo e a porca (1957), A pena e a lei (1959) e Farsa da boa preguiça (1960), Ariano prestou uma contribuição ao teatro brasileiro que ultrapassa em muito o mero aspecto folclórico por meio do qual a grande mídia e a indústria cultural costumam retratar sua obra.

A dramaturgia de Suassuna caracteriza-se por explorar de modo vivo e expressivo a dimensão histórica da linguagem teatral, por meio da qual o passado imemorial da arte do teatro se estende até o presente, levando a consciência do espectador a assumir o estatuto de consciência histórica. Idealizador do Movimento Armorial, lançado em 1970 em Recife com o objetivo de “realizar uma arte erudita brasileira a partir das raízes populares da nossa cultura”, segundo as palavras do próprio autor, o dramaturgo foi capaz de fazer um uso muito significativo da língua portuguesa e do imaginário cultural inerente a ela, recuperando, assim, um longo itinerário que remonta às primeiras formulações da cultura greco-latina. Do mesmo modo como agiu Guimarães Rosa em relação ao universo da prosa, Ariano Suassuna levou a dramaturgia brasileira a estabelecer um profícuo diálogo com a tradição cultural. No caso dele, especificamente com os procedimentos teatrais da comédia latina, das formas cômicas medievais e do humor renascentista europeu, fazendo tais linhas de força desembocarem na caudalosa manifestação da comicidade popular do Nordeste.

Nos dias de hoje, em que grande parte dos fenômenos artísticos e culturais perderam de vista a necessidade da mediação histórica, constituindo formas imediatistas e espetaculares (pelos efeitos instantâneos que suscitam nas massas), torna-se essencial atentar para o fato de que a obra teatral de Ariano Suassuna está assentada sobre as “mediações e os processos de intersecção de criação individual e tradição cultural”, proporcionando o convívio dialético entre “indivíduo e sociedade, escrita e cultura, imaginação e memória social, invenção e convenção”, segundo as premissas críticas defendidas pelo professor Alfredo Bosi.

Constatar, por exemplo, que João Grilo, em Auto da compadecida, é a representação da inteligência prática, obreira, artesã, capaz de invenção, aproximando-se, assim, do Ulisses da Odisseia – o dos mil artifícios, o embusteiro, o trickster: inteligente, malicioso, hábil –, alarga automaticamente o conceito de historicidade que temos do personagem. Igual efeito provoca em nós a identificação, também no Auto, de alguns recursos de distanciamento crítico, temperados por um inequívoco caráter lúdico – o tom de crítica social da peça está presente não somente no jogo que é estabelecido com o público, acentuado pela intervenção de um comentador, como também pelos bem marcados elementos circenses e populares.

Saber distinguir os elementos constituintes de uma comicidade verdadeiramente crítica – como a que concebeu Ariano Suassuna – daquele conjunto de clichês e estereótipos que sustenta boa parte do humor que toma lugar hoje no teatro, no cinema e na televisão é estar voltado à dimensão existencial e cultural das expressões simbólicas plenas de historicidade, que jamais se contentam em se verem reduzidas à condição de alegorias ideológicas subservientes ao status quo.

A experiência do riso genuíno e franco advinda das comédias de Ariano recusa os poderes instituídos e afirma o valor absoluto da vida em sociedade.

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Uni-Rio e em Letras pela Universidade de São Paulo, onde também desenvolveu suas pesquisas de mestrado e de doutorado. É professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero desde 1997 e crítico literário da Revista CULT.


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