Dossiê | Parentalidade e vulnerabilidades

Dossiê | Parentalidade e vulnerabilidades
Imagem restaurada pelo projeto Retratistas do Morro, coordenado por Guilherme Cunha (Foto: Afonso Pimenta)

 

O termo parentalidade surgiu no interessante texto “Parenthood as a Developmental Phase: a Contribution to the Libido Theory” (1959), de Therese Benedek, no qual a psicanalista húngara propõe que a parentalidade – e não a adolescência – seria a derradeira fase do desenvolvimento libidinal. Embora Benedek seja a precursora do uso do termo, ele passou a ser associado ao psicanalista francês Paul-Claude Racamier nos anos 1960, revelando nossa habitual falha em reconhecer autorias femininas. O termo retorna com força na década de 1980 com René Clement e Serge Lebovici, associado aos estudos das patologias puerperais e seus efeitos sobre a prole. Foram as pesquisas sobre psicose infantil e autismo que mais lançaram luz para a importância da funções parentais na constituição do sujeito, ao mesmo tempo que produziam efeitos imaginários preocupantes. 

O alerta sobre as condições necessárias ou desejáveis na formação de crianças psiquicamente saudáveis derivou para a fantasia contemporânea de uma parentalidade capaz de oferecer garantias ou, ainda, que pudesse ser garantida por algo. Assim, temos a proliferação de oferta de especialistas que, por meio de livros, palestras e intervenções, garantiriam o “ambiente suficientemente bom” para bebês, crianças e adolescentes. 

O olhar de julgamento e controle que, segundo Jacques Donzelot em A polícia das famílias (1977), já incidia sobre mães e cuidadores desde o século 18, passa a ganhar contornos surrealistas do Big Brother de George Orwell, do livro 1984 (1949). O comportamento de pais e mães é vigiado e comentado nos espaços públicos por desconhecidos; a forma como educam é postada para exibição e controle nas redes sociais; o apelo ao profissional aparece em todas as esferas do cuidado (alimentação, sono, higiene, comportamento…); o Estado passa a judicializar o comportamento dos pais. Se, por um lado, reconhecemos a necessidade de leis e campanhas de proteção à infância, não podemos ignorar os efeitos persecutórios e de perda de espontaneidade que essa onipresença crítica acaba por produzir. Quando falamos em vulnerabilidades, tenhamos em mente os efeitos deletérios que a atual vigilância tem sobre pais, mães e responsáveis.

Os pais vivem um desamparo ansioso, fruto da desautorização a que estão sujeitos e se sujeitam desde o início. Desde a concepção in vitro, passando pelo controle gestacional e pelo parto cirúrgico, homens e mulheres vão se convencendo de que sem ajuda da medicina não se procria mais. As conquistas da tecnologia oprimem sujeitos que passam a se considerar incapazes de assumir a descendência sem a continuidade do apoio profissional.  

Desnorteados diante da avalanche de novidades, os sujeitos perdem de vista o que funda o humano. Inúmeros são os fenômenos sobre os quais cabe se debruçar ao falar em parentalidade e vulnerabilidade hoje, porém o mais importante é reconhecermos que nem toda tecnologia do mundo ou mudança de costume extinguirá o que precisamos para nos fazer humanos em qualquer época: corpo erógeno, transmissão geracional, laço social.

A impostura maniqueísta diante de uma parentalidade performática escancara, no mínimo, dois grandes equívocos. Um no qual se supõe que a transmissão inconsciente entre pais e filhos pode e deve ser controlada pela vontade – fonte de inesgotável exploração capitalista na forma de consumo de produtos para “garantir” a relação entre pais e filhos. Pretensão que não esconde se basear em nossa eterna tentativa de “higienismo” psíquico. 

No outro equívoco se pensa a relação parental como algo suspenso no tempo e no espaço, sem relação direta com o laço social e com sua época. Curiosa suposição da qual nem sempre os próprios psicanalistas escapam e que ignora que reprodução de humanos é sempre reprodução do laço social, não de corpos. Mesmo porque corpos humanos são corpos enlaçados pela linguagem, antes de tudo. Só existe o corpo sobre o qual se diz. São esses os nós que nos enlaçam, nos quais tropeçamos ou ficamos enredados.

É nesse sentido que Thais Garrafa nos lembra que toda criança precisa ser adotada, sendo filho biológico ou não. Adoção que se dá como assunção de um lugar de fato junto ao outro. Mas para lidar com os ruídos imaginários que as adoções legais podem criar, Garrafa nos alerta para as intervenções que consideram a lógica em jogo no ato de adotar e que exigem que estejamos advertidos da opacidade dos fenômenos. Em outras épocas, a criança adotada já foi alvo de suspeita e segredo, para se tornar hoje objeto de idealização – e a gratidão, exigida da criança, seria a prova da bondade dos pais. Tal contexto nos obriga a permanecer atentos em buscar distinguir os caminhos imaginários que tentam obturar tudo o que remete às origens.

Em seu texto sobre o terceiro excluído da concepção, Daniela Teperman nos aponta como os fantasmas rondam as histórias que envolvem doação ou “aluguel” – no caso do útero – de material genético. A medicina produz realidades antes inimagináveis e que exigem nomeações inteligíveis. Os embaraços na tentativa de produzir a história da origem do sujeito revelam mais sobre nossas fantasias sexuais infantis do que sobre óvulos, espermas e úteros. A autora cria uma oportunidade valiosa para pensarmos essa temática antes inédita e hoje quase corriqueira, mas não menos ansiógena. Com esses dois textos, refletimos sobre o equívoco da transmissão livre de ruídos, livre do estranho e, portanto, livre do próprio sujeito. Aspiração distópica de uma transmissão geracional sem inconsciente!  

Do outro lado do equívoco, mas, de fato, inextricavelmente associado a ele, temos a miragem da relação pais-bebê – historicamente mãe-bebê – como passível de ser pensada fora do tempo e do espaço. Assim, teremos os diagnósticos que imputam à mãe o fracasso nas relações parentais unicamente a partir de sua singularidade ou que ignoram que, para a mãe ser a razão última de todos os males do filho, é necessário que ela seja a única responsável por ele. Fato que vem sendo reiterado nos últimos séculos e que Élisabeth Badinter denunciava – não sem causar escândalo – há 40 anos com o incontornável Um amor conquistado: o mito do amor materno (1980).

O que os textos de Roberta Kehdy e Daniela Roberta Antônio Rosa nos trazem são as questões decorrentes do esgarçamento do laço social responsável pela sustentação da parentalidade. Vulnerabilidade social e racial são temas que se entrecruzam e agravam, sem, contudo, confundirem-se. Seja da perspectiva do profissional de saúde, que tem que se defrontar com seus preconceitos diante da mãe pobre e banal ou do sociólogo que mapeia as condições da negritude no Brasil, temos muito que trilhar para chegarmos mais perto das necessidades reais de nossos cidadãos. 

Não são só em relação às políticas públicas, que se mostram contraditórias com a necessidade de garantias mínimas para o exercício das funções parentais e que ignoram as condições nas quais se encontram os adultos que querem exercê-la. Muitos profissionais ainda entendem os laços entre pais e filhos como autoengendrados e sem conexão com os laços sociais de onde emergem. Ainda sustentam velhos paradigmas da boa mãe, que não levam em consideração a transmissão geracional e os valores culturais.

Falar sobre parentalidade e vulnerabilidades é sobrepor dois campos de fragilidades e potenciais. De um lado temos as condições sociais nas quais pais, mães e cuidadores se sustentam para estar lá para bebês, crianças e jovens; de outro, temos os desafios que cada sujeito em sua singularidade deverá enfrentar para estabelecer essa relação. 

Numa época em que somos regidos pelo discurso capitalista, proposto por Lacan em O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1988) como o discurso que não faz laço, há que se perguntar que tipo de laço podemos e queremos reproduzir ao colocar sujeitos no mundo. 

Ao pensar na transmissão singular que cada sujeito imprime em sua descendência, cabe refletir sobre a sustentação das ficções necessárias para fazermos borda no insondável da origem. Somos feitos de histórias que precisam ser contadas de novo e de novo e de novo, para que o novo possa advir.  

Neste dossiê buscamos discutir, do vasto campo da parentalidade, algumas questões que o exploram muito além da relação mãe-bebê, tão insistente quanto dissimuladora, e das múltiplas responsabilidades em jogo nas funções parentais.

Vera Iaconelli é psicanalista e doutora em Psicologia pela Usp, autora de Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna (Annablume) e Criar filhos no século XXI (Contexto)


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