Dossiê | O movimento LGBT brasileiro: 40 anos de luta

Dossiê | O movimento LGBT brasileiro: 40 anos de luta
Apesar das conquistas, o Brasil ainda ostenta um índice alarmante de assassinatos de pessoas LGBT por crimes de ódio (Arte: Andreia Freire)

 

Em 1975, Cid Furtado, relator do projeto de emenda constitucional que legalizava o divórcio, argumentou, em seu parecer contrário à proposta na Câmara Federal, que “desenvolvimento e segurança nacional não se estruturam apenas com tratores, laboratórios ou canhões. Por detrás de tudo isso está a família, una, solidária, compacta, santuário onde pai, mãe e filhos plasmam o caráter da nacionalidade”.

Esta frase do deputado arenista na discussão sobre o divórcio talvez seja uma das mais perfeitas sínteses da moralidade alçada à política de Estado durante a ditadura que governou o Brasil de 1964 a 1985. Sua indignação com o divórcio, na verdade, remetia a preocupações muito mais profundas com a revolução dos costumes, com a liberação sexual, com a maior presença da mulher no mundo do trabalho e no espaço público, com a entrada em cena de lésbicas, homossexuais masculinos e travestis, com cada vez menos pudores de assumir suas identidades sexuais ou de gênero.

Assim, a vida privada, a esfera íntima, o cotidiano e o que se fazia entre quatro paredes foram também se convertendo em objeto da ânsia reguladora e do controle autoritário da ditadura brasileira. Pessoas eram vigiadas cotidianamente e, em seus dossiês produzidos pelos órgãos de informações, registrava-se, como uma mácula, a eventual suspeita ou mesmo a certeza categórica de se tratar de um “pederasta passivo”, como se isso diminuísse ou desqualificasse a integridade e o caráter da pessoa perseguida.

Por ser homossexual, ela perdia sua humanidade e, portanto, era considerada menos respeitável em sua dignidade. Publicações com material erótico ou pornográfico eram monitoradas e, muitas vezes, apreendidas e incineradas por violar o código ético da discrição hipócrita que grassava em uma sociedade que consumia vorazmente e cada vez mais este tipo de conteúdo.

Músicas, filmes e peças de teatro foram vetados e impedidos de circular por violarem  “a moral e os bons costumes”, sobretudo quando faziam “apologia ao homossexualismo”. Na televisão, telenovelas e programas de auditório sofreram intervenção direta das giletes da censura, que cortavam quadros e cenas com a presença de personagens “efeminados” ou “com trejeitos” excessivos e que, portanto, com sua simples existência, afrontavam o pudor e causavam vergonha nos espectadores.

Travestis, prostitutas e homossexuais – tanto masculinos quanto femininos –  presentes nos cada vez mais inflados guetos urbanos eram também uma presença incômoda para os que cultivavam os valores tradicionais da família brasileira. Por esta razão, passaram a ser perseguidos, presos arbitrariamente, extorquidos e torturados pelo fato de ostentarem, em seus corpos ou em seus comportamentos, os sinais de sexualidade ou de identidade de gênero dissidentes.

Editores e jornalistas que se dedicavam aos veículos da então chamada “imprensa gay”, especialmente do jornal Lampião da Esquina, foram indiciados, processados e tiveram suas vidas devastadas, muitas vezes com o apoio do sistema de justiça, porque tematizavam e mostravam as homossexualidades fora dos padrões de estigmatização e ridicularização que predominavam na “imprensa marrom” até então.

Esses exemplos ilustram perfeitamente como as questões comportamentais tornaram-se objeto da razão do Estado depois do golpe de 1964 e, sobretudo, após 1968. A sexualidade passou a ser tema afeto à segurança nacional para os militares conforme registraram e documentaram os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Os desejos e afetos entre pessoas do mesmo sexo também foram alvo do peso de um regime autoritário com pretensão de sanear moralmente a sociedade e criar uma nova subjetividade afinada com os princípios binários e heteronormativos tão caros às políticas morais conservadoras.

No entanto, apesar dessas constatações, é forçoso também notar, no final dos anos 1960 e início da década de 1970, uma ambiguidade fundamental. Ao mesmo tempo em que se perseguiam a liberdade sexual, inúmeras boates, bares, espaços de pegação e sociabilidade entre homossexuais, geralmente em guetos, surgiam e conviviam com a repressão do Estado nos lugares públicos. O inchaço dos grandes centros urbanos, junto com o aumento das camadas médias no período que sucedeu o Milagre Econômico, permitiu novas vivências e perspectivas para homossexuais que estavam já cansados de viver dentro de seus próprios armários.

Editores e jornalistas de veículos da então chamada “imprensa gay” foram indiciados, processados e tiveram suas vidas devastadas (Reprodução)
Editores e jornalistas de veículos da então chamada “imprensa gay” foram indiciados, processados e tiveram suas vidas devastadas (Reprodução)

Nesse contexto, o longo e duradouro processo de transição política, que se intensificou na passagem da década de 1970 para a de 1980, vai ser marcado por uma crescente busca de visibilidade e cidadania. Diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil desempenharam um papel fundamental na democratização do regime, lutando pelas liberdades públicas, por participação política, por justiça econômica e pelo reconhecimento de suas identidades.

Em particular, o ano de 1978 representou um marco fundamental na redemocratização do Brasil e na história do movimento LGBT. Isso porque, entre as diversas forças políticas que se engajaram nessas lutas democráticas como as mulheres e os negros, merece também destaque o então chamado “movimento homossexual brasileiro” (MHB).

Com efeito, no primeiro semestre de 1978, foi organizado em São Paulo o “Somos – Grupo de Afirmação Homossexual”, coletivo pioneiro na articulação do MHB. Pouco tempo antes, havia começado a circular o já mencionado mensário Lampião da Esquina, a primeira publicação de abrangência nacional, claramente engajada nas lutas políticas travadas pela imprensa alternativa e feita por homossexuais para homossexuais. A partir do Somos, vários outros grupos foram organizados em diversas partes do país.

É verdade que as homossexualidades e as transgeneridades têm uma história muito mais antiga no Brasil. Desde os tempos mais remotos, é possível identificar registros de comportamentos sexuais e de gênero dissidentes ao padrão imposto pelo sujeito pretensamente universal (homem, branco, europeu, heterossexual, cisgênero, católico e proprietário). Também se podem identificar, nessa longa história, modos diferentes de ação política e de contestação por parte dos corpos e desejos “desviantes”.

Contudo, é nesse momento peculiar da recente ditadura civil-militar que emerge, em sentido sociológico e político específico, um movimento social de luta pelo reconhecimento, pela visibilidade e pelo respeito das diversidades sexuais e de gênero.

Desde então, o MHB tornou-se LGBT, sofrendo diversas transformações e contribuindo também para promover importantes mudanças na sociedade e no Estado brasileiros. Proliferaram os coletivos e grupos organizados, diversificaram-se as identidades dentro da “sopa de letrinhas” LGBT, multiplicaram-se as formas de luta, conquistaram-se direitos, construíram-se políticas públicas, realizaram-se os maiores atos de rua desde as Diretas Já com as Paradas do Orgulho LGBT e ocuparam-se as redes sociais e as tecnologias com novos ativismos.

Diversas organizações do movimento deixaram de se opor diretamente contra o Estado, como ocorria com a primeira geração do Somos ainda sob a ditadura, para buscar parcerias com ONGs (dentro e fora do país). Emergia mais claramente, assim, uma atuação concertada para obter financiamento, políticas públicas e direitos das diversas instâncias de governo.

Ainda nos anos 1980, conseguiu-se, por exemplo, despatologizar a homossexualidade, retirando-a da lista de doenças do então Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps). Buscou-se inscrever no novo texto constitucional em discussão na Assembleia Nacional Constituinte, expressamente, a vedação à discriminação por orientação sexual em uma importante campanha. Apesar da derrota na votação do tema, diversas legislações municipais e estaduais acabaram incorporando essa perspectiva. Além disso, vale lembrar as inúmeras campanhas realizadas junto a veículos de comunicação para que deixassem de representar as pessoas LGBT de forma sempre caricatural  e debochada.

Muitos desafios também foram enfrentados durante esses anos de avanço de reconhecimento. A epidemia do vírus do HIV e da aids, que chegou a ser chamada de “peste gay” pela mídia, teve um impacto tremendo nessa trajetória, tanto no sentido de conferir mais visibilidade e atenção públicas quanto no de reforçar a estigmatização associando, novamente, a homossexualidade à doença. As políticas de saúde foram reivindicações centrais nesse momento.

Sobretudo a partir dos anos 1990, profissionalizaram-se cada vez mais as entidades LGBT, nacionalizaram-se as organizações e emergiram novas frentes de integração e também de cooptação. O “pink money” dos homossexuais bem-sucedidos economicamente possibilitou um potencial de consumo cada vez mais direcionado a esse público. Essa proximidade maior com poderes públicos e mercado, para além dos guetos de outrora, traduziu-se em um padrão de cidadania classista pelo consumo, aumentando a visibilidade de alguns setores, mas excluindo os mais pobres.

De qualquer forma, o que era impensável há quarenta anos tornou-se hoje uma realidade na vida de muitas pessoas LGBT no país. Homossexuais já podem se casar e adotar crianças, com os mesmos direitos dos heterossexuais. Pessoas trans podem alterar, no registro civil, o prenome e o sexo diretamente nos cartórios, sem necessidade de cirurgia, laudos médicos ou autorização judicial. Há coordenadorias LGBT na maior parte das instâncias de governo pelo país afora e até mesmo partidos políticos de diferentes matizes ideológicos têm, atualmente, setoriais voltados para as questões LGBT.

No entanto, apesar dessas conquistas brevemente sumarizadas aqui, o Brasil ainda ostenta um índice alarmante de assassinatos de pessoas LGBT por crimes de ódio. Apesar de termos a maior Parada do Orgulho LGBT do mundo em São Paulo todos os meses de junho, somente no ano de 2017, segundo dados do Grupo Gay da Bahia, atingimos o recorde de 445 pessoas LGBT assassinadas, ou seja, mais de uma pessoa LGBT assassinada por dia.

Além disso, vivemos uma reação conservadora contra as conquistas desse período, com o enfraquecimento de políticas públicas do Executivo e um Legislativo dominado por uma bancada religiosa fundamentalista que impede o avanço das pautas sexuais e morais. Isso porque a representação política de LGBT ainda é muito precária e insuficiente. Assim, tem cabido, na maior parte das vezes, ao Judiciário um reconhecimento e efetivação dos direitos LGBT, o que nem sempre acontece.

Soma-se a isso uma patrulha dos setores mais conservadores que construíram um espantalho chamado “ideologia de gênero” para defender as hierarquias sexuais e de gênero, impedindo que essas discussões possam avançar no âmbito escolar e cultural.

Chegamos, assim, aos quarenta anos do movimento LGBT com muitos avanços e outros tantos desafios a pensar. O dossiê que segue pretende celebrar essa história de quatro décadas de lutas à luz das dificuldades do presente, reconstruindo alguns temas e refletindo criticamente sobre momentos privilegiados da trajetória deste importante ator político do Brasil contemporâneo.

No primeiro texto, James N. Green, reconhecido brasilianista e militante histórico do movimento homossexual brasileiro, analisa o surgimento do Somos e sua relação com as demais lutas políticas fazendo um balanço desses quarenta anos. Marisa Fernandes, por sua vez, estudiosa e ativista de primeira hora do movimento das lésbicas, reconstitui como as mulheres que desejavam outras mulheres enfrentaram dificuldades com a homofobia dentro do movimento feminista e com o machismo do movimento homossexual.

Já a transfeminista e pesquisadora Jaqueline Gomes de Jesus traça a história da luta por visibilidade e organização das pessoas trans, segmento mais estigmatizado e discriminado ainda. Regina Facchini, professora da Unicamp e ativista, examina diversas facetas do processo de criação das novas identidades com um panorama interessante das lutas LGBT das origens até o presente. Fechando o dossiê, o leitor encontrará o artigo de João Silvério Trevisan, escritor reconhecido e pioneiro do movimento homossexual brasileiro, que aborda os avanços recentes e as novas frentes de luta que se vão abrindo para a renovação deste jovem e pulsante movimento LGBT brasileiro.

RENAN QUINALHA é advogado, ativista, doutor em Relações Internacionais pela USP e professor de Direito da Unifesp


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(2) Comentários

  1. Nossa cultura é patriarcal, fundada em princípios bíblicos, no que se toca questão sexual. Sendo assim, ainda é um tabu a aceitação dos LGBT, por parte dos heterossexuais. Vemos que é difícil para um hétero, ter que se relacionar socialmente com um homo. Ainda há um bom caminho a ser percorrido para que a dignidade de cada um seja respeitada como merece, e por direitos inalienáveis…

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