Dossiê | Arte e autoritarismo

Dossiê | Arte e autoritarismo
‘Cruzando Jesus Cristo com Deusa Schiva', de Fernando Baril, 1996, exposta na ‘Queermuseu’ (Divulgação)

 

O que chamamos de “arte” hoje não é exatamente o que foi chamado de arte ao longo dos tempos, embora tenha com as obras do passado uma afinidade concreta. Arte na Idade Média não é o mesmo que Leonardo da Vinci, Van Gogh ou Frida Kahlo trataram como arte. Do mesmo modo, Damien Hirst ou Marina Abramovic, para ficar apenas no campo das artes visuais e da performance, são artistas muito diferentes daquilo que se convencionou chamar de artista ao longo da história da arte. A dança, a fotografia, o cinema, a literatura, a poesia, tudo se modificou; o vasto campo da arte divide espaço com a indústria cultural em nossos dias e, mesmo assim, sabemos que a arte que existiu até aqui continuará se modificando enquanto existir mundo humano.

Desde que Marcel Duchamp criou sua Fontaine, a preocupação com o que é arte tornou-se um problema social. Não podemos mais falar em obra de arte sem ver nela um problema estético e metafísico ao mesmo tempo. Do mesmo modo, ética e política não ficam de lado na experiência com as obras. No entanto, muitos interpretam as artes em um sentido moralista em que a crítica necessária à obra cede lugar ao ódio contra a própria ideia de uma expressão livre.

A confusão em torno da arte e das obras de arte não é estranha à própria história da arte nem ao seu conceito. Não há nada de muito surpreendente no que vivemos hoje no Brasil, tendo em vista que o cenário geral é de autoritarismo e não de democracia. Jogos de poder envolvendo as artes fazem parte da história. Mas a postura pela qual a imposição de ideias impede o diálogo sobre elas resume o nosso momento.  

O autoritarismo cresce onde o poder precisa intensificar-se sob pena de perder lugar. Na era do espetáculo, uma determinada “ordem da imagem”, em sentido análogo ao que chamamos desde Foucault de “ordem do discurso”, precisa ser compreendida. Há tabus e proibições, rituais de circunstância, regras relativas ao que pode ser mostrado a quem e em que contexto. É nesse lugar que devemos analisar a censura sobre as artes. Seja regra estatal, seja parâmetro moralista da vida cotidiana, a censura visa ao controle tanto das populações, quanto das mentalidades, das formas de perceber o mundo e de sentir o que quer que seja. Para além de classificações indicativas de faixas etárias, a censura (institucional ou popular) não visa à orientação dos espectadores de cinema, de teatro e exposições em geral, que devem servir à construção de uma experiência estética, ética e política adequada a cada idade, mas à deturpação do sentido da expressão artística, que deve ser destruída em contextos de autoritarismo justamente por constituir o seu contrário.

Arte e autoritarismo são dois termos que, colocados lado a lado, exigem um cuidado, o de se interpor uma terceira palavra entre eles. A palavra “versus” –  porque arte e autoritarismo se opõem por definição. Em sentido muito genérico, arte remete à expressão livre. Autoritarismo remete ao cancelamento da expressão livre. Arte é justamente o conceito, tanto quanto o objeto concreto que, na forma de “obra de arte”, nos permite compreender o que não é autoritário. Uma obra de arte sempre nos chama a pensar, não nos obriga a absolutamente nada.

O caráter autoritário tem história e geografia, desenvolve-se no tempo e no espaço. Ele se manifesta em contextos os mais diversos, em nível pessoal e coletivo. Assim como a arte. Pessoas e instituições fomentam em determinados contextos formas antidemocráticas de expressão, cuja característica é o apagamento e o silenciamento do outro. As obras de arte tornam-se insuportáveis porque dizem justamente aquilo que, por algum motivo, não se poderia dizer. A arte não se contém diante do autoritarismo.

O abismo entre arte e autoritarismo é o lugar para o qual olhamos nesse momento. Tendo em vista as exposições, as peças de teatro, as performances canceladas por instituições e a postura de grupos ou cidadãos confusos em relação ao lugar da arte em suas vidas, devemos nos perguntar em que estágio se encontra a capacidade de cognição, de compreensão e a sensibilidade no Brasil de 2017. Que experiência estamos fazendo com a linguagem, da qual a arte é a nossa mais complexa expressão? Na tentativa de fazer pensar, o que constitui a tarefa de uma filosofia da arte democrática nesse momento, Gaudêncio Fidelis, curador da mostra Queermuseu, nos contempla com um texto de caráter testemunhal na abertura deste dossiê sobre arte e autoritarismo. Ao nos revelar seu ponto de vista, analítico e crítico, desde os acontecimentos de setembro de 2017 em Porto Alegre, ele nos alerta para a violência institucional contra as artes, os artistas, o curador, os colecionadores e o público. Na sequência, o texto de Cláudia Mattos, historiadora da arte, nos faz pensar na relação histórica entre arte e democracia, colocando a questão das artes perseguidas e censuradas em momentos ditatoriais. Rodrigo Duarte, o maior especialista brasileiro na obra de Theodor Adorno, escreve sobre a questão da “personalidade autoritária” relativa ao tema da arte e da cultura. De minha parte, em um texto voltado a compreender o fenômeno artístico, busco chamar a atenção para as formas de pensar a arte e, sobretudo, ao que chamei de teorias populares da arte. Por fim, Charles Feitosa, numa abordagem criativa entre as questões estabelecidas pela filosofia da arte mais tradicional – platônicas e aristotélicas – e a aparição da arte na vida cotidiana, nos faz pensar para além de certas convenções que mantêm nossa percepção precarizada.

Que esse dossiê, com a modéstia que as teorias devem ter diante do caráter epifânico das obras, nos permita abrir os olhos e ver além das viseiras autoritárias distribuídas pelos mistificadores e publicitários que manipulam as artes com a má-fé que leva inevitavelmente, em qualquer momento, à má política. 


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(2) Comentários

  1. Adoro ler os artigos e comentários da Márcia, pela ausência de pedantismo cultural, indo ao natural, com simplicidade, direto ao ponto, que é o entendimento da mensagem por qualquer um. Muito obrigado.

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