Dos relógios e das horas

Dos relógios e das horas
(Foto: Noor Younis/Unsplash)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de julho de 2020 é “tempo”


Silêncio – não fosse o compassado bater de ponteiros quebrando-o irredutíveis aqui e ali. Em uma confusão anacrônica de móveis e objetos antiquados e modernos, dois relógios pendiam lado a lado em uma parede da sala.

Um deles, um velho cuco de madeira escura e verniz descamado pelo tempo, com um seis romano a deixar pender o segundo dígito. “O caixão de um pássaro moribundo”, nas palavras do neto.

O outro, apesar de analógico, carregava uma estética indubitavelmente atual de fundo transparente, ponteiros finos e nenhum número. “Uma bússola sem coordenadas”, nas palavras do avô.

Da parte do mais velho, não muito mudara na rotina da casa; da parte do mais jovem, enfim alguma rotina se lhe formara. Do primeiro, a pandemia não confundira os hábitos; ao segundo, trouxera nada mais que estorvo completo. Algo, porém, ambos partilhavam: um temor profundo da palpável imaterialidade do tempo – ponteiros que batem.

Em determinado dia de pandêmica reclusão, não podendo mais suportar a autonomia das horas, mutuamente caíram em exasperação.

O avô, arrebatado pelo tempo a escorrer-lhe das mãos, qual sangue que da ferida goteja segundo após segundo, detinha um impulso irrefreável. Contemplou o velho cuco da sala por um breve instante e, sem conter-se mais, subiu em uma poltrona de chita desbotada e arrancou o relógio da parede. Em um sofá a outro canto, sentou-se e acomodou a relíquia lenhosa em seu colo, à guisa de preciosidade.

Não havendo percebido o avô no ambiente, o neto agora observava, de uma porta lateral, o relógio despojado ainda suspenso na parede. Deteve-se por um longo momento, buscando entender o que o assustava. Ao julgar então que o tempo corria para lugar nenhum, um reflexo dominante lançou-o em corrida na direção do relógio. De um salto, agarrou-o, cerrando-o nos braços como um recém-nascido, e sentou-se no mesmo sofá que o avô.

Apenas então notaram um ao outro. Olharam-se nos olhos brevemente e, em sincronia, voltaram a atenção para suas próprias máquinas. Em um movimento simultâneo, viraram-nas de costas para si, abrindo delgadas portinholas na parte traseira, como se fossem dorsos de dois autômatos. Trabalharam em meditação, quase êxtase, entre uma mansidão fleumática e uma ansiedade latente. Tornaram os relógios de frente para si e miraram-nos com semblantes agora aparentemente triunfantes. Mostraram suas obras um ao outro.

– Não penso que compreendo… – respondeu o neto, os olhos fixos no velho cuco.

– Atrasei o relógio. Em muitas horas, muitos dias.

– Não consigo perceber.

– Pois está muito bem atrasado. Não entendo é o que se passa com o seu… – apertou os olhos o avô, ajeitando os óculos sobre o nariz.

– Adiantei o relógio. Também em bastante tempo.

– Tampouco tenho habilidade para notar qualquer mudança.

– Garanto-lhe que está muito bem adiantado.

Silenciaram-se. Os ponteiros pulsavam. Regressaram os olhares a seus próprios relógios, desorientados.

Cada um virou seu aparelho de costas para si mais uma vez, abriu a portinhola e manejou as engrenagens. Os dedos vibravam. Não trajavam mais qualquer fleuma em seus rostos – tinham medo. Levaram mais tempo que no primeiro experimento. Por fim, um ao outro exibiram o resultado.

– Que lhe parece?

– Não vejo nada – foi o ultimato do avô.

– Não há como!

– É o que vejo…

– E é o mesmo que eu vejo no seu: nada – concluiu o neto.

Baixaram a cabeça para seus relógios, em desamparo. O avô soprou o pó do mostrador. O neto alisou números imaginários com os dedos.

Em agitações concomitantes, agarraram os ponteiros dos minutos. Hesitaram. Deslizaram afavelmente os dedos, empurrando os ponteiros em sentidos opostos, carregando consigo as agulhas dos segundos. Pouco a pouco foram acelerando, dando voltas e voltas completas. Aumentaram a pressão dos dedos e atropelaram as horas. Giraram os três ponteiros sobre cada um dos relógios, alucinados em batalhas antagônicas. Mais rápido… Mais rápido… Mais rápido!

Perderam o controle da humanidade das próprias mãos, tomados de angústia dilacerante. As articulações estremeciam. Agravaram a força sobre os mostradores, os olhos vidrados. Sem descolar os dedos dos ponteiros em movimento célere, chacoalharam as máquinas, como quem as tentasse ressuscitar ou trucidar.

Em um átimo de segundo, contudo, não obstante os mais aferrados empenhos, tudo desgovernou-se. Craque! Craque!

Ponteiros, molas, rodas: tudo ao ar.

 

Ricardo do Nascimento Fernandes, 30, é médico veterinário,
administrador e mestrando em Gestão do Desenvolvimento
Sustentável. Mora em Kleve, na Alemanha

 

Deixe o seu comentário

TV Cult