Dois cocos gelados 

Dois cocos gelados 
(Foto: Montvlov/Unsplash)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de janeiro de 2021 é “perspectiva”.


Lucy acordou naquele dia com um objetivo claro, coisa que tem sido cada vez mais rara para ela nos tempos que correm: ela precisava comprar um carregador novo para seu notebook. Escovou os dentes, lavou o rosto e se encontrou com vovó Cici na cozinha, que cortava legumes. “Preciso ir naquela loja de eletrônicos hoje”, disse enquanto enchia uma caneca de café, assim, sem bom dia. “Vou com você, preciso dar um pulo na relojoaria ali perto”.

Já faz um ano que ela comenta em trocar as pilhas dessa coisa velha, pensou Lucy. No entanto, ela mesma vivia adiando comprar uma nova fonte; passou meses criando gambiarras para que o computador dinossauro reagisse. Será que ela tá precisando de um cartão de crédito? Se me pedir eu até empresto, pensava a avó sobre as lutas da neta para manter o aparelho vivo nas madrugadas insones em que apenas encarava uma página em branco, adiando, mais uma vez, as histórias que ela não podia contar. Se tivesse mesmo o que escrever, escreveria em cadernos, em post-its, em blocos, papel higiênico, que seja. Não era sobre o computador apenas.

Mais tarde, as duas estavam no carro que vovó dirigia. A primeira parada foi na relojoaria do bairro, que cobrou vinte reais pelas pilhas. “Muito caro”, reclamou a senhora. Então seguiram caminho para a loja de eletrônicos, onde Lucy (devidamente protegida com máscara) repreendeu a avó que, dentro do estabelecimento, estava sem. Lá, resolveram o assunto em coisa de cinco minutos: o valor foi dividido em duas parcelas no cartão de crédito da avó.

No caminho de volta, Cici decidiu que procuraria outro lugar no centro da cidade para conseguir as pilhas, “devo achar mais barato”. A neta não contestou, ela queria mesmo ir até o centro verificar se a biblioteca municipal estava aberta ao público. Estacionaram e foram cada uma de um lado procurar a tal relojoaria; do lado esquerdo, Lucy entrou em um multishopping com mais intenção de encontrar seu oásis literário funcionando.

Não estava. Um anúncio na porta de entrada indicava que não havia previsão de retorno para o local. Desapontada, voltou para o ponto de encontro que havia combinado com sua avó, mas encontrou-a ali mesmo, no multishopping, finalmente trocando as pilhas. “E aí, encontrou?”, “Sim, ele cobra 15 reais”, “Que pechincha hein, Cici?”, disse a neta com sarcasmo. Quando olhou para o rapaz que trocava as pilhas, ficou em choque. “Oi, Luciana”, disse ele, numa voz que a jovem desconhecia. Voz de homem, não de menino. Luciana. Por um instante ela estranhou o próprio nome, como se não fosse seu.

“Meu Deus, Fernando, você! Quanto tempo, tudo bem?”, “Vou bem”. Lucy conhecia aquela expressão que a máscara não escondia, ele estava sem graça, provavelmente corando. Fefê, era assim que era chamado. Lucy e Fefê, a dupla inseparável desde o prézinho; Cici, que mal notou aquele encontro, deixou uma nota de vinte reais com a neta e foi dar uma olhada no carro estacionado em local duvidoso.

Ficaram os dois ali, separados por anos no escuro. Para quebrar o gelo, Lucy perguntou do sobre os filhos do amigo de infância; ele comentou sobre o desafio de educá-los em casa, mas que está tudo bem. Não mencionou nada sobre o casamento. “E sua mãe?”, questiona ele. “Tá bem, se casou (de novo), teve um bebê e mora numa cidade afastada”, ele riu sobre o bebê, surpreso, e Lucy também. “Ela está feliz?”, “É, ela tá bem”.

Cici acenou do lado de fora, a garota deu a nota de vinte reais, Fefê voltou cinco de troco. “Bom te ver, Fê”, “Bom te…te ver Lu”, ela podia jurar que o ouviu gaguejar, como fazia antigamente. Não sabia dizer se foi coisa da cabeça.

Voltando, a avó decide fazer um caminho diferente, pela ponte estaiada. Ao longe uma placa indicava “Cocos gelados quatro reais”. “Vovó eu tenho três reais trocados aqui”, a avó tirou a nota de cinco da carteira como quem diz “Bingo!”.

Foi um dia quente, um dia de verão. Um dia em que objetivos claros e simples levaram duas mulheres para outros lugares; lugares mais afastados de suas consciências viciadas em adiar coisas. Lucy matava a sede de uma infância que escapou de si mesma enquanto a avó engolia o coco inteiro de uma só vez porque agora podia ver o tempo passar à moda antiga, em seu pulso. Não tinha tempo de ser a menina que foi quando ganhou aquele relógio do homem para quem prometeu o “sempre”. A neta apreciava o momento em êxtase, mas ela… Ela não tinha esse luxo.

Terminou e deu o coco para a garota segurar, que foi bebericando enquanto a avó pilotava. Quando Lucy finalmente secou o fruto, a senhora disse “joga no mato, os dois. Vai se decompor”. E assim ela fez.

Em casa, cada uma voltou para seus lugares: Lucy ligou seu computador e procurou pelo significado de perspectiva: não como quem quer saber a definição, mas como quem gostaria de lembrar como agir no radical da palavra. Vovó, por outro lado, tirou o relógio do pulso e guardou entre as parafernalhas do passado que permanecem vivas, embora intocáveis. Elas estavam com sede de novo, e sabiam de quê.

Lulu Mendes, 23, mora em
São Paulo. Escreve contos,
ensaios e produz conteúdo digital.

 

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