Desordem e despejo

Desordem e despejo

Foto: Azul Serra

Welington Andrade

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Marieta Baderna foi uma dançarina italiana que esteve no Rio de Janeiro em 1851, provocando um “certo frisson” em suas apresentações. Seus admiradores eram chamados de “os badernas”, e assim então a palavra acabou incorporada à língua portuguesa, significando não somente uma situação em que reinam confusão e bagunça, mas também “divertimento noturno; boêmia, noitada”, dentre ainda outras acepções.

Foi em torno dessa figura cuja trajetória é fascinante, embora um tanto quanto obscura – Marieta Baderna teria se interessado pelo lundu dançado pelos negros nas ruas do Rio de Janeiro e incorporado alguns passos desse gênero de forte apelo sensual às suas apresentações, escandalizando a elite conservadora e escravocrata que frequentava os teatros – que a atriz Luaa Gabanini concebeu a performance BadeRna. Um happening que funciona ao mesmo tempo como protesto e como réquiem. A companhia de teatro da qual ela faz parte está em vias de perder sua sede em razão do implacável processo de especulação imobiliária por que passa a cidade de São Paulo.

Criado em 1999 pela diretora e dramaturga Claudia Schapira, pelas atrizes Roberta Estrela D’Alva e Luaa Gabanini e pelo DJ Eugênio Lima, o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos constitui uma das mais originais companhias de teatro de São Paulo, cujo trabalho está voltado à linguagem do teatro hip-hop, por meio da qual os fundamentos do teatro épico de Bertolt Brecht se aliam ao caráter de resistência advindo da cultura hip-hop praticada, sobretudo, na periferia da cidade.

Foto: Chris Oliver Lamster

Nas duas últimas décadas, a capital paulistana assistiu ao surgimento de um expressivo número de grupos que têm ajudado a revitalizar o teatro brasileiro por meio da condução de pesquisas muito consistentes e da realização de processos de trabalho pautados pela ousadia e pela inventividade. Se pudéssemos apontar de modo geral quais são as preocupações comuns de todos eles, certamente dentre as mais relevantes estará a relação tão profícua estabelecida com a cidade. As novas companhias de teatro de São Paulo não montam seus espetáculos seguindo a lógica do circuito do entretenimento. Antes, elas estão dispostas a fazer com que o teatro reencontre sua antiga vocação de arte pública, urbana, cosmopolita, política, enfim. Não à-toa, o helenista francês Jean-Pierre Vernant declara em Mito e tragédia na Grécia antiga que a tragédia ática surge no século IV a.C. como um poderoso instrumento por meio do qual a cidade de Atenas está disposta a tomar a si mesma como objeto de suas reflexões. Ocorre, entretanto, que a cidade que deveria abrigar tais coletivos está, literalmente, desalojando-os de seus locais de trabalho.

A performance de Luaa Gabanini trata do doloroso processo de expulsão do grupo Bartolomeu de sua sede no bairro da Pompeia (enquanto este texto está sendo concluído, não se conhecem ainda os desdobramentos da ação de despejo de que eles estão sendo alvo) por meio de uma articulação de sentidos entre passado e presente, que é a marca das criações da companhia, aliás. O fato de a atriz ter ido buscar uma figura tão transgressora como a bailarina italiana que entendeu rapidamente que a vivacidade da cultura brasileira estava nas ruas, de posse dos negros, já atesta o ponto de vista adotado. Os escombros em que se transforma o espaço da representação falam por si sós. E ainda reforçam um sentido ironicamente involuntário. Cada Pompeia produz as ruínas que lhe cabem. Seja por cataclismos naturais, seja por catástrofes político-econômicas. A cena do improviso de ideias é de uma pulsação cômica estonteante, sendo conduzida pela atriz com perfeito domínio do tempo, bastante acelerado. Arrebatador é o poema “Americabadernaterraavista!”, de autoria de Claudia Schapira (cuja habilidade no trato com a língua portuguesa, em todos os seus textos, é notável), que conduz a atriz a uma intensa dramaticidade, desdobrada na belíssima coreografia apresentada ao final, quando ela dança ao som do hino nacional brasileiro.

Nesse momento, cada passo da intérprete se converte em um impasse, disposto a reverberar um corpo trágico, cômico, patético. Como se Marieta Baderna tivesse vindo visitar pessoalmente a sede do grupo para aumentar ainda mais a sensação de desordem que reina no local. Já que, por enquanto, a única ordem ali é a de despejo.

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