A democracia é possível?

A democracia é possível?
O filósofo camaronês Achille Mbembe (Reprodução/ The European Graduate School EGS)

 

Sem dúvida, Achille Mbembe é um dos mais instigantes pensadores contemporâneos. Herdeiro de Frantz Fanon, leitor de Michel Foucault e de Gilles Deleuze, o filósofo camaronês traz uma tese original: o neoliberalismo é uma reedição da escravização negra moderna. Essa formulação pode até soar inquietante. Mas uma das teses mais interessantes de Mbembe está numa argumentação que situa radicalmente a escravização dos povos africanos como a condição de possibilidade do capitalismo moderno (liberalismo) e o advento do capitalismo contemporâneo (neoliberalismo) como um projeto de revitalização da própria escravização. Se no capitalismo moderno tínhamos dois tipos de pessoas: donas do meio de produção e trabalhadoras, no capitalismo contemporâneo existe um terceiro tipo: especuladoras do sistema financeiro (rentistas). Ora, para que esse tipo de personagem do sistema capitalista exista é preciso usar e explorar as pessoas trabalhadoras tal como se escravas fossem. Conforme Mbembe, o neoliberalismo é um momento da história da humanidade em que todos os acontecimentos passam a ter valor de mercado. Uma época em que o tempo, por mais curto que seja, passa se converter em força reprodutiva da forma-dinheiro.

Mbembe argumenta que no contexto neoliberal o sujeito “está aprisionado no seu desejo”. Pois bem, trata-se daquilo que podemos denominar de um sujeito neuroeconômico, isto é, uma pessoa que precisa publicar sua vida íntima como moeda de troca no mercado da “felicidade” – o que explicaria o fenômeno das redes sociais em que as fotos estão repletas de sorrisos. Outro modo de entendermos o sujeito neuroeconômico é associando-o à figura da pessoa negra escravizada. Eis a hipótese: o sujeito neuroeconômico do neoliberalismo é uma reedição da mão de obra negra que possibilitou que a Europa acumulasse excedente descomunal e fez com que as elites eurodescendentes da América concentrassem o capital. Tal como a pessoa escravizada, o sujeito neuroeconômico vive entre dois mundos: animalidade e coisificação. Por um lado, busca realizar seus desejos primários de alimentação, excreção, sono e sexo; por outro, a sua transformação consentida em ferramenta de um sistema. Não é de estranhar que uma forma de entender melhor o sujeito da neuroeconomia esteja justamente em sua dupla injunção de coisa e animal. Sem dúvida, o racismo e a escravização criaram as condições suficientes para a implantação da raça negra como sinônimo de elo perdido da evolução humana. O darwinismo em suas primeiras versões intensificou a ideologia da África como território dos quase humanos. O que, em termos políticos e econômicos, significou dizer: corpo-moeda, corpo-mercadoria e corpo-ferramenta. Essas três caracterizações foram assumidas pelo neoliberalismo como a oportunidade de implantação radical da liberdade de mercado. Em certa medida, uma imitação, ou melhor, adaptação do sistema escravocrata racista que vigorou nos países da América até o século 19. O projeto de dominação europeu-branco (ou branco-europeu) produziu o racismo moderno como um discurso para justificar a exploração da população negra como mão de obra, o extermínio dos povos indígenas da América o quanto fosse possível e a ocupação “redentora” do novo mundo como modelo de gente. Ora, o racismo contemporâneo do contexto neoliberal está dizendo que a população negra não é suficiente para o trabalho. O racismo continua; mas sua extensão parece de curto alcance para garantir a especulação do mercado financeiro.

A partir dessas considerações podemos entrar num aspecto do pensamento mbembiano que merece destaque neste artigo: a democracia e o neoliberalismo são inconciliáveis. A democracia só é viável se o racismo for combatido radicalmente. Daí, o título-pergunta: “a democracia é possível?”. Nossa conjectura mbembiana, a democracia só será possível com o fim do racismo. Mas, como o racismo não é um sistema que se elimina com “boa consciência”, “boa vontade” ou “boas intenções”, numa análise de conjuntura mundial podemos especular que o racismo deve ser aprofundado, expandido e cada vez mais criativo em novos códigos e formas novas. Portanto, o maior obstáculo à democracia é o racismo.

Vale a pena situar o que entendemos por democracia. A história da democracia remontaria à Grécia antiga e sua consolidação estaria na modernidade no contexto de emergência do Iluminismo. Em termos gerais, um regime político que se opõe ao autoritarismo. Vale a pena mencionar o historiador africano do tronco linguístico bantu, o angolano Patrício Batsîkama, que publicou Lûmbu: a democracia no antigo Kôngo (2014). Os estudos de Batsîkama apresentam o Lûmbu como a instituição máxima da antiga Confederação do Reino do Congo, que se subdividia, já no século 5º antes da Era Comum, em quatro órgãos. Pois bem, o Lûmbu previa uma assembleia consultiva para execução do poder. Em certa medida, a antiga Confederação do Congo – mais conhecida como o Reino do Congo – e a Grécia antiga convergem na postulação de um princípio formal da cidadania – elemento fiador da democracia. Democracia seria justamente o exercício do poder sem que os grupos políticos e instituições fossem constituídos por raças. A partir desse ponto de vista, o racismo é o rival estrutural da democracia. O discurso racial e suas implicações corroem e destroem a possibilidade do regime democrático. Em poucas palavras, a democracia e o racismo são incompatíveis.

Conforme Mbembe, a identificação da ideia moderna de democracia com o próprio liberalismo traz uma inconveniente aproximação do projeto de globalização comercial que precisa produzir e manter centros e periferias, sem perder de vista o modelo escravocrata em que a racialização da humanidade é indispensável para o sucesso do projeto. A insuperável contradição imposta à democracia é justamente a importação de elementos que a desestabilizam. E esses elementos são os aspectos que constituem o racismo. Por isso, consideramos importante criticar a tomada da razão mercantilista como lógica da democracia. Afinal, no contexto dessa racionalidade o mundo seria uma superfície para livre concorrência e competição.

Pois bem, a partir das contribuições mbembianas, conjecturamos que a democracia só é possível com um combate ao racismo em todas as suas frentes. Vale ressaltar que Mbembe é herdeiro de Fanon. Os “condenados da terra” continuam existindo e são indispensáveis para a manutenção dessa versão “democracia” que se traduz como neoliberalismo. Diante do controversíssimo projeto de civilizar o mundo perpetrado pela Europa e das relações assimétricas de poder entre elites europeias e africanas, o pensador camaronês está sugerindo que a população negra mundial, assim como os povos indígenas, abandone o estatuto da vítima (o que não podemos confundir com vitimização) e a população branca deixe de negar os privilégios e a responsabilidade histórica. Ainda que a formulação de Mbembe possa parecer bastante sutil, nossa hipótese é de que a democracia só é viável no enfrentamento do racismo. Daí, as reflexões mbembianas trazerem duas categorias analíticas para a cena da democracia: reparação e restituição. Em outros termos, a democracia só é possível mediante os esforços de reparar e restituir. A liberdade não é uma lei natural contra o mercado e a humanidade tal como princípios sobrenaturais; a liberdade, no contexto democrático, só é possível superando o racismo num exercício profundo e generoso de restituir e reparar as condições de bem-viver para todas as populações que têm sido historicamente animalizadas. Sem dúvida, é preciso reconhecer o grande desafio contemporâneo das novas faces do fascismo, todos os seus rostos camuflam a ditadura do mercado – arquirrival da democracia – como se fosse o sinônimo mais bem elaborado da democracia. Porém, o verdadeiro nome desse fenômeno é racismo. Contudo, somente a reparação e a restituição são elementos políticos necessários e suficientes para produção de um projeto democrático de mundo.

Renato Noguera é doutor em Filosofia pela UFRJ, professor da UFRJ e coordenador do grupo de pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções.


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