Sobre a cassação do mandato de Deltan Dallagnol

Sobre a cassação do mandato de Deltan Dallagnol
(Foto: Pablo Valadares/Agência Câmara de Notícias)

 

Não sei dizer se foi juridicamente impecável a decisão do Tribunal Superior Eleitoral de cassar o mandato de Deltan Dallagnol. Direito e economia, dentre outras áreas sobre as quais muitíssima gente se apresenta no debate público como especialista, são territórios sobre os quais evito sistematicamente dar opiniões. Não por modéstia, por ignorância mesmo.

Em um mundo em que todos se autorizam a pontificar sobre tudo, reservo-me o direito de não exorbitar o círculo da minha competência. Poupo assim os meus leitores do engodo de uma opinião aparentemente bem-informada, mas que não passaria do rodapé do debate público.

Dada a premissa sobre a minha abstenção de julgar o julgamento, devo dizer que me diverti imensamente com a ironia da situação, principalmente em face das alegações de injustiça, perseguição política disfarçada em devido processo legal, abuso de poder do tribunal, e, por fim, lawfare, proferidas enfaticamente pelos lavajatistas.

Para quem não sabe, lawfare é uma palavra criada por analogia a warfare, que são os meios, formas, armas e estratégias através dos quais se trava uma guerra. Lawfare é o uso da lei ou de manobras jurídico-legais como arma de guerra ou, por analogia, como a principal estratégia para aniquilar um inimigo político.

A graça trágica da coisa toda é porque os lavajatistas reeditaram ontem todas as palavras-chave das acusações que lhes foram feitas no passado, diante das quais Dallagnol, Moro e os membros do seu círculo íntimo de Curitiba reagiram invariavelmente como se estivessem diante de um ultraje incabível ou de um previsível espernear de quem tem apenas a alternativa de acusar os acusadores e os juízes de parciais e mal-intencionados.

Em palavras pobres, aparentemente, lawfare nos olhos dos outros é refresco, no nosso é ignomínia que clama aos céus, é massacre de inocentes. É o martírio do justo que só demonstra quão excelsa é a causa pela qual ele se dá em sacrifício.

O fato é que tanto fizeram os protagonistas da Lava Jato nos tempos das vacas gordas – quando juízes e procuradores usaram a justiça para fazer justiçamento de acordo com a sua agenda política e em conformidade com a autocompreensão de uma missão cívico-divina de purificar o Estado e a política nacional segundo o próprio gosto ideológico – que era de se esperar que, de um jeito ou de outro, cedo ou tarde, a conta por tantos desmandos pudesse chegar. Dallagnol tratou de dar seu jeito de escapar desse acerto, abandonando o Ministério Público para se refugiar em um mandato parlamentar. Por unanimidade, a corte eleitoral negou-lhe o valhacouto do parlamento. Eis tudo.

Como era igualmente de se esperar, saiu fazendo um pronunciamento a modo de manifesto em que tenta demonstrar, para os já convertidos, que foram a sua conduta irreparável como procurador, o seu desmedido apreço pela justiça e a sua atuação sem tréguas contra a corrupção os fatores que o levaram até a guilhotina controlada pelos maus. Como era de se esperar, declarou que mais forte são os poderes de Deus e a força do povo, que há de conduzi-lo de novo às glórias de um mandato. É claro que prometeu voltar, lavado no sangue do cordeiro, ungido pelo povo do Paraná.

Até torceria pelo sucesso do ex-procurador federal, ex-deputado e ex-símbolo da virtude, em seu recurso ao STF, pois creio firmemente que todos merecem um julgamento justo e que o devido processo só se conclui depois do último recurso. Mas aí lembrei que a seita lavajatista não acredita em recurso: uma vez condenado o réu, condenado fica para sempre, pois o juiz que o condena é infalível por definição. Não vou querer que um lavajatista de tamanha envergadura leve a pecha de “descondenado” para sempre, uma vez que o STF, nos dogmas da seita, não tem o condão de declarar um processo nulo ou de dizer que o condenado não teve direito a um julgamento justo.

Pensei até em lhe desejar que fosse julgado com a mesma isenção de ânimo, o mesmo respeito sagrado pelo devido processo e a mesma paixão por direitos e garantias que a Lava Jato empregava para os outros. Mas, pelo histórico dos processos daquela operação, receio que isso não fosse levar a melhores resultados ou a decisões juridicamente perfeitas. Só me resta, portanto, contemplar a triste ironia do fato de que quem com lawfare fere, com lawfare pode ser ferido.

Sim, meus amigos, esse comentário,contém doses altíssimas de ironia. Tenham uma linda semana.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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