O que e como se diz: delírio lacrativo e usos da linguagem

O que e como se diz: delírio lacrativo e usos da linguagem
Quanto maior a reflexão sobre a linguagem, mais determinada e posicionada é a escolha discursiva (Foto: Amanda Lins)

 

Na contemporaneidade virtualizada e atualmente pandêmica, todo mundo fala ao mesmo tempo, disputando um taco de atenção em alta velocidade. No palco, algumas palavras conquistam e conferem estrelato, ordenando condutas com status de encerra-debates, como pontos finais. Lacração. Discurso para a plateia, superficialidade, linchamento, patrulhamento do erro do outro e a proliferação de pessoas virtuosas são características cada vez mais explícitas da comunicação atual, especialmente das redes virtuais (sociais?). Algumas expressões se projetam, mas, pelo excesso, todas as palavras perdem valor.

Elas, aliás, nunca se realizam no abstrato, na frieza do dicionário ou soltas no universo. Somente quando ultrapassam o nível puramente gramatical, no uso concreto da vida, passam a existir com identidade temporária, estatura, peso, passado, textura e toda uma malha de simbolismos que muda a cada contexto de fala.

O ato de dizer, nunca neutro, interliga o sistema gramatical a elementos extralinguísticos que condicionam a produção do discurso, sempre e necessariamente realizado por pessoas situadas social, ideológica e historicamente. Pode, portanto, servir para propagar o que acreditamos – se ativado conscientemente – ou a propósitos outros, que encontram abrigo na caixa de reprodução.

Querendo ou não, muito do que somos está representado na palavra que dizemos ao mundo – dirigida a uma interlocutora ou interlocutor. Esse “tu” que orienta o discurso está pressuposto em qualquer comunicação, que por sua vez é orientada pelo entendimento ativo do outro. “A compreensão é uma forma de diálogo”, reflete, com beleza, Bakhtin. Como imergir para compreender uma mensagem sob a navalha do relógio e ante a falaciosa obrigação de se posicionar? Para discordar é preciso pensar, argumentar. Apontar o dedo em delírio lacrativo é abdicar da reflexão por um punhado de curtidas online ou batidinha nas costas em situação offline.

Nas redes, existem os robôs que reagem a palavras específicas, independentemente de onde/como venham. Fora delas, pessoas-robôs catam possíveis erros e dubiedades passíveis de condenação como ouro de mina. Contam as folhas da árvore ao lado e nem percebem o desmatar da floresta…. Só que os termos, em si, não têm culpa de nada. É o alinhavar das palavras, polissêmicas e heterogêneas por natureza, que corporifica uma mensagem única, dita num dado contexto, com aquele jeito e naquele tom, por alguém de um determinado grupo social e trajetória de vida.

Todo esse complexo processo da linguagem, a um só tempo subjetivo, dialógico e sistêmico, ocorre invisível e silenciosamente, pois configura uma necessidade humana tão vital quanto a respiração. O corpo sabe respirar, sabe dormir, sabe dizer. É instintivo. Ou seja, existe colheita mesmo sem semeadura e as palavras brotam por força do hábito – de tanto escutar.

É a profusão do dizer sem pensar no que se diz, apassivando-se linguisticamente, tagarelando repetições que levam adiante (com sucesso) mensagens do mercado, dos sistemas de opressão muitas vezes expressas em frases vazias, preconceituosas, chavões elitistas, associações mentais hegemônicas e padronizadas.

Mas pode ser diferente, uma colheita semeada. A democracia exige retorno de quem a deseja.

Quanto maior a reflexão sobre a linguagem, sua formação, impactos e consequências, mais determinada e posicionada é a escolha discursiva. Maior é a compreensão de como se constroem as narrativas que viram manchete no jornal, sentença do judiciário, sermão na igreja, tarefa na escola, critério de seleção no emprego, comando às manadas na internet (e fora dela), etc. Ampliada também é a certeza da importância da liberdade de expressão, da circulação do pensamento crítico, das narrativas alternativas.

Por sua natureza estruturante, a linguagem é tanto uma categoria de opressão, impondo relações de subordinação entre grupos sociais – gênero, raça, etnia, religião, geografia, sexualidade, idade, padrões culturais, etc; como também de enfrentamento e transformação social. O corpo e a palavra – linguagem verbal e não verbal – efetivam violências estruturais como o racismo, o machismo, o classismo – mas também o altruísmo, a igualdade, a consciência, a não-violência. Tudo passa pela linguagem, tudo comunica. Falar é fazer.

 

O racismo na linguagem

Termos e expressões herdadas do período escravagista presentificam o violento passado racista quando ditas, mesmo que muitas vezes como reprodução viciada e sem relação à origem específica do termo. A maioria dos casos associam direta ou veladamente a cor preta a algo ruim, ofensivo, negativo, desumanizado, não necessariamente no significado do dicionário, mas no sentido social que adquire com a linguagem. Denegrir é um exemplo, significa “fazer ficar mais negro”, porém o contorno que o sustenta é pejorativo e o tornar-se negro vira uma situação ofensiva, sinônimo de difamação, rebaixamento. O mesmo para expressões como “a coisa tá preta”, “mercado negro”, normalmente interligando a negatividade, a ilegalidade e o submundo à cor negra.

São expressões de cunho racista, difundidas em cada canto do último país a abolir a escravidão nas Américas, e esse contexto nos exige um olhar ainda mais atento e crítico. Pela repetitiva trajetória ao longo dos séculos, de uso e abuso, esses termos devem ser evitados refletidamente, como ação de enfrentamento às estruturas de esmagamento, e não banidos ou cancelados (a perigosa palavra da moda). O direito à memória, à necessidade vital de recontar a história em perspectiva alternativa a dos que se nominam conquistadores, para que seja visível o fio entre o passado e as marcas que estruturam o agora, não pode ser suprimido. O saber, o conhecimento amplo sobre quem e o que nos antecedeu é o que nos põe de pé a olhar o futuro.

O cancelamento virtual ou presencial é autoritário por natureza, ousa impor o apagamento do outro e dos registros do que somos enquanto sociedade. Faz da aniquilação alheia uma estratégia despolitizada de combate (nunca debate) aplaudida, copiada e em expansão.

 

Anular uma pessoa ou ideia
impondo o silenciamento
por medo dos ataques, sob
a justificativa de reparação
(qualquer que seja), fragiliza
a democracia e incoerente-
mente nos remete a práticas
usuais dos tempos de exceção
e escravização. A história nos
ensina: é perigosa a ideia do
“direito” de anular um
contrário em praça (rede) pública.

 

Nesta perspectiva, não se trata de fazer do termo proibido e censurado, mas de resgatar seu trajeto social para provocar a reflexão transformadora, vislumbrando alternativas que desaguem na ressignificação. Para que possamos “ser mais”, nos diz Paulo Freire. Como novo saber, não como supressão, as palavras podem ser exploradas em sentidos alternativos, como novas representações ou até mesmo na opção do não uso, agora sim, no nível do consciente. O mercado negro, por exemplo, pode ser utilizado para situar um projeto de empreendedoras negras e empreendedores negros, e, no modo pejorativo, ser substituído por mercado ilegal.

O racismo (todas as formas de opressão) não está na palavra, mas na forma. Está na semântica da fala, do olhar, da atitude. Lista negra pode indicar filmes com protagonistas negros. A página em branco expressar o bloqueio do que não se sabe dizer, ou pensada como recomeço. Esclarecer tender ao sentido de iluminar, permitir ver melhor. Negritar, dar destaque, valorizar. Ou, nada disso, expressarem a ofensa e humilhação.

Vale o convite à ressignificação, à ativação da engrenagem linguística para superar as desigualdades, transformar as realidades. Demonizar palavras longe de seu contexto ou pessoas que deixaram escapulir uma expressão dita por vício linguístico, ou até mesmo um erro concreto, adia a chamada do enfrentamento coletivo. Emicida menciona um “clima de medo” (de falar e errar) que silencia a todos. “Esse ambiente permite que você policie a linguagem do outro sem necessariamente se comprometer com o comportamento, nem o dele nem o seu.”

Também não há aqui proposição alguma de desculpar atos racistas, apenas de separar a fala racista genuína, naturalmente acompanhada de uma violenta linguagem não-verbal e a inconfundível intencionalidade da agressão, da de pessoas em processo de desconstrução ou em exercício democrático da expressão. A atitude racista, criminosa, esta sim precisa ser denunciada.

A quem, mesmo num esforço de superação, soltou a palavra que usa desde nascida, um toque com incentivo à substituição, acolhido pela certeza de que é o pensamento crítico que efetivamente liberta. Espalhemos a provocação de uma nova gramática, a da caminhada coletiva. Toni Morrison é precisa: “Chega de pedir desculpas por termos coração de manteiga, quando o contrário é ter coração algum. O risco de perder nossa humanidade precisa ser combatido com redobrada humanidade”.

Vamos usar uma lupa para enxergar o que é grande. A direção maior da nossa energia de enfrentamento – sempre em perspectiva humanizante – é para o complexo sistema de dominações gerador de injustiças que alicerçam o modo atual de vida em sociedade. São opressões tão imensas que se naturalizam, invisíveis ao olhar anestesiado. O sistema envolve a imprensa e a mídia, a escola, a justiça, a igreja, a política, a cultura, a economia, a família, e todas as relações sociais, tramas do tecido da atualidade, vivenciadas pela linguagem.

As estruturas do discurso podem influenciar modelos mentais específicos ou representações sociais mais gerais que temos sobre “nós” e sobre os “outros”, via estratégias semânticas – prefiro chamar de trapaça linguística – que desigualam as pessoas. A forma como palavras e imagens são apresentadas, dispositivos retóricos (metáforas, hipérboles), sons (levantar a voz), significado local (vago sobre o eu e detalhado sobre o outro) e global (ênfase aos pontos positivos de um e negativos do outro), negativas e concessões (“não tenho nada contra, mas”) e uma lista que Van Dijk detalha em seu Discurso e poder. São sofisticadas e diversas as maneiras de convencer e insinuar sem afirmar ou deixar pistas.

 

Enxergar a realidade através da linguagem

Com mais atenção aos complexos processos e representações linguísticas, cognitivas e ideológicas é possível enxergar para além da palavra, manifesta não somente pela vizinha, mas especialmente pela vizinhança, nos lugares públicos, nas instituições, nas TVs, redes virtuais, nas campanhas eleitorais etc. Nas sociedades modernas, o acesso ao discurso (e sua compreensão) é uma condição primordial à construção do consenso, e, assim, projeta-se como o modo mais efetivo de exercer o poder e a dominação. Ou de enfrentá-los.

O abuso do poder linguístico só pode se manifestar na língua onde existe a possibilidade de variação ou de escolha, como chamar uma mesma pessoa de terrorista ou de lutador da liberdade, a partir da posição de quem fala. O mesmo em invasão x ocupação; traficante x usuário, para ficar nos exemplos clássicos da imprensa brasileira, mais visíveis a título de exemplificação. Ou a estratégia semântica de multifacetar a palavra polêmica, utilizada como substituta amistosa e reducionista de casos de violências ou confrontos ideológicos reais, demandantes de aprofundadas abordagens da realidade para serem visualizados e compreendidos, oásis incompatível com o deserto superficial das reportagens em geral, sobretudo na televisão.

Os exemplos são tantos que cansam, mas também permitem dimensionar os decibéis capazes de atingir quando, em sua disfarçada sutileza, alastram-se pelas instituições, formando conceitos e influenciando atitudes. Vamos ativar a língua em sentido anti-horário, usufruindo do seu constante e involuntário movimento, sempre aberto a acomodar termos e novos usos.

Como na palavra nordeste, que carrega em seu uso genérico o lugar de ofensivo xingamento, pautado pela invenção hegemônica do desprezo pela região, associação à pobreza ou terra de gente preguiçosa. A ação discursiva consciente e empoderada também é capaz de tatuar a palavra em tintas outras, do conhecimento da história, da tradição revolucionária, da vanguarda tecnológica, do protagonismo político. Do nordeste como potência, não como massa, mas como agrupamento de geografias e culturas singulares, numa narrativa nordestinizada.

Minha prática e crença é a de que devemos compor uma nova gramática, que certamente já está em construção, mas que também pode ainda nem existir, afinal, terá o sentido que intencionarmos dar.

Juliana Romão é jornalista, mestra em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), estuda a inclusão de gênero na linguagem e a presença da mulher na política, é membra da PartidA e co-criadora do projeto Meu Voto Será Feminista.


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