Estante Cult | Deligny: uma liberdade radical

Estante Cult | Deligny: uma liberdade radical

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Nos livros do pedagogo francês Fernand Deligny (1913-1996), chama a atenção a escrita despojada e, ao mesmo tempo, precisa nas metáforas e analogias que articula para pensar a educação, de forma que a própria escritura parece ocupar posição paralela às suas formulações radicais e inovadoras sobre a pedagogia. No texto, ele elabora, também formalmente, a operação radical que empreendeu na educação de jovens delinquentes, inadaptados, psicóticos e autistas. Da mesma forma como concentrou seus esforços para reinventar os meios e as circunstâncias em que essas crianças estavam inseridas, na tentativa de dar-lhes uma chance de sobrevivência em uma sociedade que as excluía ou normalizava, ele também desestabiliza o convencional em um texto teórico para fazer despontar o imponderável, para além das normas do signo linguístico.

Em um livro de 1948, Os vagabundos eficazes: operários, artistas, revolucionários: educadores (n-1 edições), Deligny relata suas experiências pedagógicas com jovens delinquentes na década de 1940. Em 1943, ele fundou um lar destinado à educação e prevenção da delinquência juvenil, nos arredores de Lille. Em 1945, obteve fundos do governo para transformar o local no Centro de Observação e de Triagem (COT), que funcionou de janeiro de 1945 a maio de 1946 em uma mansão abandonado pela guerra que recebia jovens delinquentes à espera de uma decisão jurídica sobre seus futuros, os quais Deligny se esforçava, sem a ajuda da Vara da Infância, em retirar da prisão.

A experiência e a rotina no COT ocupam grande parte de Os vagabundos eficazes, mas um livrinho de aforismos aparecido três anos antes, Semente de crápula: conselhos aos educadores que gostariam de cultivá-la (n-1 edições), já elaborava de maneira irreverente alguns pressupostos que foram aplicados no Centro de Observação.

Perpassa esses textos a ideia do pedagogo como um “criador de circunstâncias”, que cria um novo meio para a criança desajustada: não um artificial, mas um conectado à sua realidade social, pelo qual terá liberdade e espaço para descobrir suas aptidões. Nesse sentido, após um primeiro momento de dificuldade com vigias e pedagogos “diplomados” da sociedade, Deligny recruta, para atuar no COT, trabalhadores vindos de meios populares, em muitos casos os próprios vizinhos que, meses antes, reclamavam da baderna dos delinquentes do COT. Assim, cria uma situação na qual o meio social se encarrega de si mesmo e produz, intencionalmente, circunstâncias favoráveis à autonomia dos jovens. Por isso, em um dos aforismos de Semente de crápula, lança a provocação para os administradores, juízes e pedagogos convencionais: “Se vier trabalhar comigo, lhe darei os diplomados e ficarei com os iletrados”.

São a esses educadores sui generis que o autor se refere no título vagabundos eficazes: vagabundos pois, em vez de reprimir ou coagir os delinquentes, muitas vezes se irmanam a eles, incentivam-nos e levam às últimas consequências suas pilantragens; eficazes pois, sem tentar incutir-lhes o moralismo abstrato e hipócrita da sociedade, ajudam-nos a formar uma coletividade na qual têm melhores oportunidades de se entender, se avaliar e sobreviver a um mundo hostil, desde o início, pela sua origem social. Em outro aforismo de Semente de crápula, dá o tom de sua prática educacional: “se você brincar de polícia, eles brincarão de bandidos. Se você brincar de Deus, eles brincarão de diabos. Se brincar de carcereiro, eles brincarão de prisioneiros. Se você for você mesmo, eles ficarão desconcertados”.

Durante a a ocupação plena das vagas do COT, o pedagogo era responsável por cerca de 130 adolescentes delinquentes. Lá, a vida coletiva era estruturada em torno de atividades para as quais os jovens poderiam se dedicar a depender de seus interesses. Podiam ser remuneradas (como jardinagem, ateliê, manutenção e cozinha) ou “gratuitas” (como esporte, estudos, jogos, artes decorativas, dramáticas, jornalismo etc.). Cada atividade era organizada por um educador “que busca incorporar nela tudo que pode revelar problemas”. À tarde, o Centro ficava aberto para receber visitas.

Com o pagamento pelas atividades remuneradas, os educandos alugavam seu quarto, uniformes de trabalho, pagavam as refeições e podiam comprar “acessórios, ornamentos ou bugigangas” em um “boteco” instalado no local. De sábado à segunda-feira de manhã, os que tinham família voltavam para o lar, os que não tinham, ou eram rejeitados, passavam o fim de semana com famílias operárias da região, como uma forma de aproximá-los das condições habituais de trabalho.

Mesmo em casos de fuga, vandalismo, violência ou infrações nas idas à cidade, eles não eram punidos, seguindo a concepção de que “a ausência total de sanção desorienta sua agressividade”. Em grande parte dos relatos de Os vagabundos eficazes, esses jovens inadaptados, efetivamente, saíam do COT e integravam algum trabalho em uma comunidade operária e passavam uma vida sem problemas judiciais.

Das diversas crianças e seus problemas retratados no livro, um é delicioso pela ingenuidade infantil que desponta da aparente couraça de malícia precoce: ao receber no COT sete jovens que se uniam em diversos roubos e delitos para tentar fugir para a América, Deligny emprestou-lhes dinheiro e os enviou, junto com um dos educadores, uma viagem para o porto marítimo. Diante da tão esperada possibilidade de fuga, eles voltaram ao Centro encantados com suas aventuras, devolvendo ainda o troco das passagens. Nesse sentido, ele pondera sobre as sementes de crápula: “evite as interdições sob pena de ver seu bando se precipitar e atravessar com prazer as novas barreiras”.

Após a experiência no COT, o pedagogo monta na década de 1950 La Grande Cordée, um grupo de albergues ao redor de Paris em que foram alocadas “crianças com desvios de caráter graves, psicóticos” para serem cuidados pelos próprios alberguistas e estalajadeiros. Ele estimava, assim, “que fora do clima contagioso dos asilos ou dos lares especializados, eles teriam chances de ficar bem; de encontrar, após algumas tentativas, experiências sucessivas, algo que os faria se agarrarem à vida”, escreve Émile Copfermann no prefácio de Os vagabundos eficazes. A partir da década de 1960, o pedagogo francês envereda para o acompanhamento de crianças autistas severas, não verbais, às quais dedica o final de sua carreira.

Na pedagogia de Deligny, o político não parece ser manifesto, mas perpassa sua forma. Ele não cumpre nenhum programa político ou partidário na educação. E, por isso mesmo, tem a possibilidade de experimentar uma pedagogia da liberdade radical, sem implicações morais ou ajustes a abstrações convenientes à sociedade. Dessa forma, no entanto, não deixa de formar jovens politicamente críticos, atentos às diferenças nas relações, nos afetos e nos tratos pelos substratos sociais nos quais circulam.

No contexto sócio-histórico brasileiro, em que a criminalidade infantil está a todo momento em pauta, com a discussão recorrente sobre a diminuição da “maioridade penal”, a experiência de uma educação radical e libertária, como a praticada pelo pedagogo francês, talvez possa mobilizar o debate em outros termos, findando a lógica punitivista, da tortura, do claustro e dos maus-tratos que não para de engrossar a gritaria neocolonial “Tem que bater, tem que matar”.


ESTANTE CULT | NOTAS
Welington Andrade

Concebido pelas pessoas das etnias acã da África ocidental – notadamente, os asante de Gana –, o adinkra é um conjunto de símbolos representando ideias expressas em provérbios que pode ser estampado em tecido, esculpido em pesos de ouro ou talhado em peças de madeira. Em Adinkra: sabedoria em símbolos africanos, Elisa Larkin Nascimento e Luiz Carlos Gá reproduzem 86 imagens (e seus respectivos significados) baseadas, seja no corpo humano e na vida vegetal, seja em animais, em corpos celestiais, em objetos feitos pelo ser humano e em formas abstratas. Trata-se de um antigo sistema africano de escrita que demove a visão etnocêntrica europeia de que os povos da África eram todos ágrafos. O volume conta ainda com um belo texto introdutório de Nei Lopes, que inventaria poeticamente a formação do vocábulo adinkra, e com um alentado posfácio de Renata Felinto, no qual a artista plástica e pesquisadora destaca a iminência de paradigmas não europeus de registro das historicidades e discorre sobre como o pan-africanismo descortina um outro cânone artístico para as artes visuais no Brasil.

Em 2008, a professora titular de Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais Maria Esther Maciel publicou um pequeno livro sobre um tema ainda muito pouco explorado na área da teoria literária brasileira, O animal escrito: um olhar sobre a zooliteratura contemporânea. Oito anos depois, foi a vez de ela lançar Literatura e animalidade, desdobrado, agora, em Animalidades: zooliteratura e os limites do humano, que acaba de chegar às livrarias. Trata-se de um fascinante estudo a respeito das subjetividades não humanas na esfera da filosofia, da etologia (ramo da zoologia que pesquisa o comportamento animal) e da literatura, por meio do qual a autora tece importantes reflexões e compulsa um expressivo conjunto de narrativas e de poemas que priorizam o ponto de vista animal. Os cães naturalmente usufruem de um espaço privilegiado – do Argos homérico ao Quincas Borba machadiano –, mas a obra ainda trata da barata clariciana e dos inúmeros bichos de Hilda Hilst. Encerrando o volume, Maria Esther discute o que urge ser debatido em um mundo no qual todos os viventes estão em perigo: as alteridades não humanas e as poéticas da natureza.

Parte de mim é composto por 124 capítulos breves ou brevíssimos, que articulam de modo fragmentário uma intensa relação entre mãe e filha, encerrada por um evento doloridamente dramático. Baseada em fatos reais vividos pela autora, a jornalista e escritora curitibana radicada em São Paulo Daniela Tavares, a narrativa constituiu uma conversa que articula as falas da mãe a trechos do diário de Manoela, a filha, no qual esta relata as aventuras do dia a dia, descreve as viagens realizadas e registra suas reflexões sobre o futuro. Fazendo uso de inúmeras citações de obras literárias e de canções do repertório canônico da música popular brasileira, o texto procura transformar o terrível acontecimento em um ato de resistência, projetado por sobre as palavras e a memória.

“Nossa subordinação compulsória e passiva às redes digitais é essencial para a meta neoliberal de invisibilizar ou de tornar inconcebível qualquer abertura para modos não opressivos de viver, e esse projeto de produção de obediência e de docilidade tem sido mais bem-sucedido nos Estados Unidos e em parte da Europa. Mas, como demonstrado pelas lutas continuadas e pelas formas persistentes de resistência e recusa na América Latina, na África e em outros lugares, é no Sul global, onde o espírito de revolta nunca foi derrotado, que os caminhos mais relevantes para um mundo pós-capitalista estão sendo forjados.” Com esse alerta que é também um exercício de imaginação epistemológica, o professor de história da arte norte-americano Jonathan Crary encerra o prefácio de seu mais recente livro lançado no Brasil, Terra arrasada: além da era digital rumo a um mundo pós-capitalista, no qual mapeia os modos pelos quais o mundo digital transforma tudo em mercadoria e financeiriza os afetos e as emoções. Grande estudioso dos mecanismos de controle da percepção, Crary denuncia o processo de datificação dos corpos a que vimos sendo submetidos pela atuação das big techs, que cada vez mais colonizam a subjetividade do homem contemporâneo em troca dos “incontornáveis” serviços que nos prestam.


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