De onde eu te vejo

De onde eu te vejo

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de julho de 2021 é “memória”


Alguém mais reparou na lua de ontem?

O sorriso da mãe, visto pela tela do celular, parecia radiante. Talvez sempre tenha sido, mas meus olhos não refletem adequadamente a luz. Culpa de uma genética que tem pulado de pai para filho, em um círculo de infindáveis lentes que corrigem miopias e vistas cansadas.

Estou bem cansada de estar aqui, e tenho desejado intensamente retornar a algum ponto de minha história, algo guardado no álbum de memórias, que somente me lembro de detalhes, fortes o bastante para resistirem ao tempo.

Nunca pensei que fosse sentir tanta falta do café fresco de meu pai. Um pai que tá tão velho, que me faz sentir desespero em segredo. A gente vê o tempo passar quando o mundo para. Parece que as rugas estiveram sempre aqui, desde os meus sete anos. Encobertas pelas descobertas de um mundo novo. Mundo que ficou pra trás, trazendo à tona todas as imperfeições da pele, e da alma.

Eu, que não sei rezar, falo umas palavras soltas para Deus.

Coro a face diante da ausência de respostas e sigo em pensamento para a área externa da casa; casa à qual fiz promessas de felicidades em tempos distantes. Perdidos numa mente falha e seletiva, que me atormenta as noites frias de final de julho.

Haveria crianças por toda parte, alguns bichanos e um quadro de Renoir na parede principal da sala de estar. Menti pra mim mesma que daria tempo; que o tempo era um catálogo de momentos apropriados. Mas então eu dormi e acordei assim, com quase 40 anos de pedras sobre a face, sobre os ombros, sobre a menina que trocava o R por L e, mesmo assim, em algum lugar do tempo se fez Bacharel em comunicação.

Acordei com a ausência.  O silêncio perturbador dos gritos de terror de um fim do mundo mudo. Bocas tapadas. Mortos empilhados por toda a parte. Países fechados pelos seus governantes. O meu, de peito aberto, ostentando títulos por incompetência.

Eu, contando pregos enferrujados na memória. Comprados meses antes para consertar o telhado de papai, que, de tanto gotejo, encharcou uma parte bem grande do peito. Parece no coração, mas é no olho esquerdo.

Quando a pandemia acabar, comprarei pregos novos. Mandarei emoldurar uma foto do sorriso da senhora que me deu à luz. Talvez eu tenha um filho, ou dois. Gatos e cachorros dividindo o mesmo espaço.

Se eu sair viva daqui, aprenderei a rezar, porque em salas de hospitais, de sacristias ou de ser (estar) as preces se tornam sacras, e vistas bem de perto são genuinamente bonitas de serem lembradas daqui vinte anos.

 

Viviane Ferreira Santiago, 37, é jornalista, escritora e professora.
Mineira radicada em São Paulo, SP, já publicou cinco livros, e
ainda guarda muitas histórias a serem contadas.

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