Curar(-)se…

Curar(-)se…

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2021 é “cura”


Afastando o significado químico da transformação de materiais que levam a enrijecimento e mudança de algumas propriedades macromoleculares, o dicionário dá cura também como relativo ao clérigo. O lado religioso, digo, é integralmente estranho, a construção da necessidade divina para a existência não se coaduna com a realidade vivida. Sim, ateu convicto e praticante, com indisfarçável preconceito ao nefasto por trás da fé (nefesto, um possível neologismo?), sei que muitos mitos são entendidos como os portadores da e responsáveis pela cura. No campo psicológico, é tão funcional quanto o efeito placebo. Daí alguma importância inferida.

Curar-se é, primeiro, saber-se doente. A cura reflexiva é um embate entre o remédio e a doença, um interno, o outro, externo. Mas não há necessária reciprocidade. Há curas internas para males do exterior, as atitudes que possam resolver a presença de néscios palacianos que praticam algo idêntico ao genocídio, ainda que a sinonímia não possa ser empregada.

Curar se houvesse disposição. A doença não mata, ela transfere patrimônios, responsabilidades, capitais… faz fluir a economia. Assim deve ser a lógica dos que a estabeleceram como política de estado ou de governo, tanto faz para eles que não sabem tais distinções.

Mas a cura, ela vem arrebatadora, une os convalescentes, muda a moral de todos. A cura pode ser uma palavra de liberdade, um grito contra a opressão, um sussurro amoroso, um discurso hipnótico. Os mercadores da doença a afugentam. Nesta doença mental resta a dúvida se a cura vem com a pílula azul ou a vermelha.

Reflexiva ou condicional, a partícula aparece no título e no contexto. Duas letras que levam a esse questionamento, da motivação interna para disparar efeitos placebos, autoimunidade ou qualquer outra coisa que fisiologicamente ainda ignoramos. Ou se apenas com a matéria exterior, ingerida, é que a cura se estabelecerá? Na busca pelo resultado, o caminho — por mais infeliz — fica omisso.

 

Adilson Roberto Gonçalves, 53, é pesquisador da Unesp, membro
do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Campinas,
da Academia de Letras de Lorena e da Academia Campineira
de Letras e Artes.

 

Deixe o seu comentário

TV Cult