A cura para o desgosto

A cura para o desgosto

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2021 é “cura”


 

Seria irônico dizer, mas talvez o brasileiro tenha iniciado um processo de cura mais cedo que o resto do mundo: a cura para o desgosto.

Desde o início o experimentamos. Desgosto dos desmandos, dos desserviços ao país, das declarações mais sórdidas e medonhas sobre a pandemia, do menosprezo às previsões científicas. Seguimos nessa eterna desventura de viver na contramão das melhores chances, e de acordar sempre pensando que estamos numa cilada latente.

Juntamos os absurdos que ouvimos e vimos e, como colhêssemos limões azedos, fizemos uma limonada. Adoçamo-la com o mel da indiferença e da fuga para tentar produzir um bom xarope. Tampamos o nariz para não apreciar o sabor e bebemos. Aos poucos, começamos a sentir os efeitos da cura: passamos a fechar os olhos e a não enxergar mais a dor. Nem a nossa, nem a do outro.

Exausto de tanto desprazer em aqui estar, o brasileiro encontrou um tratamento para não sentir. E assim a dessensibilização virou nossa cura. Números crescentes passaram a ser apenas mais dos mesmos, e aquele temor de que os números se tornassem nomes também foi embora. No fim, o final infeliz de tantas pessoas tem virado apenas dados. A gente parece não se importar mais.

Na falta da cura para o vírus, tenta-se curar o desgosto saindo do próprio corpo, fugindo da realidade que maltrata. Caímos numa insensibilidade desumana, mas quem sabe seja mais uma façanha desse jeitinho brasileiro.

 

Ingrid Gadelha, 35, é advogada e mora em João Pessoa – PB.

 

 

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