Cronocrítica – a propósito do livro de César Aira

Cronocrítica – a propósito do livro de César Aira


O livro Nouvelles Impressions du Petit Maroc do argentino César Aira publicado naquele sonho de consumo de editora que é a Cultura e Barbárie de Santa Catarina, me inspirou a inventar um gênero de escrita que, a propósito, já deve existir e que chamo neste instante batismal de Cronocrítica. Mas quem nunca inventou o que já existe? E como o inventei agora ainda estou naquele estado de ebriedade que se tem quando surge uma ideia. Já deve ter acontecido a todo mundo… É o que espero. Quanto a mim, de vez em quando e me dá muito prazer.

A sensação é de uma alegria que os invejosos chamarão maníaca enquanto os generosos entenderão como êxtase. Talvez eu mesma já tenha inventado isso antes, pois penso não ser a primeira vez que escrevo falando da leitura no tempo da leitura e da alegria da leitura que gera essa necessidade um livro, de um texto. A cronocrítica é a escrita de um outro texto que nasce porque se leu um texto e se sentiu comovido por ele. Como se o texto, essa coisa feita de letras, umas ao lado das outras, estivesse nos carregando num deslocamento entre o sentido de estar aqui e estar ali, de ver assim ou ver de outro jeito. Entre ser, na verdade, escritor e leitor.

A leitura, a propósito, é o acontecimento mais profundo de um livro. Também o escritor precisa ler o que escreveu. Também ele escreve para ser lido. Também ele, antes de tudo, aprendeu a ler. E aprendeu a ler antes de ler o que ele mesmo escreve. A leitura, sabe aquele que presta atenção nas coisas, é um modo de olhar fazendo conexões necessárias: o livro, a vida…

(Por sorte, quanto ao fato de já ter dito o que digo agora  – mesmo que não tenha dito e esteja confundindo tudo – há o esquecimento e seu poder de regenerar os verdadeiros sentimentos e ideias. E a cronocrítica nasce neste instante como um abandono do texto crítico em prol das impressões que o texto provoca. Bem fácil. Aproveito pra dizer que estou convencida faz já um tempo de que o amor é uma impressão. E o fato de que amei o livro vem a ser a redundância que falatava para confirmar a teoria sobre o amor que eu também acabo de inventar. Meus alunos dirão que estou mentindo, que esta teoria já é velha, mas aqui estou na posição de quem escreve e me sinto livre para mentir uma boa mentira.)

Vejam que estou falando a partir do livro e o que vejo nascer é a parte, aquela parte fantasmática do livro não escrito que todo leitor não escrevendo escreve quando ao ler pensa no que lê, textualiza sozinho dentro de si o que lê no suporte das folhas como se fosse dar uma resposta atrasada a alguma ofensa…

A era googlássica em que vivemos poderia me salvar da repetição – os espertinhoss dirão que esta brincadeira com a repetição esconde, na verdade, a evitação!!! – , e de pensar que é novo o que já existe, e de que o amor é uma impressão bem forte que nos captura como se fossemos papel manchado de tinta indelével. Prefiro ficar na ignorância sobre o que pode estar sendo repetido, pois que esta forma de desconhecimento sempre me dá meus melhores presentes. Assim, desconhecendo é que ficamos apaixonados. Com as pessoas, também com os textos.

Será que isso me redime da promessa de dizer algo de novo fingindo que a internet, onde postarei esse texto, não existe?

E para quê digo tudo isso, ora, apenas porque li Nouvelles Impressions du Petit Maroc. E tive a ideia de escrever uma Cronocrítica. E agora vejo que terei de escrever um post sobre a tal invenção já que meus leitores – os terei nesse momento? – devem estar frustrados com o fato de que isso seja apenas uma tela e não papel que pudesse ser rasgado num acesso de raiva contra o fato de que, da própria cronocrítica, deixo apenas uma impressão.  E que, no fundo, dou voltas… Mas a raiva é um afeto antiliterário e logo se deve esquecer tudo para poder encontrar o verdadeiro afeto… Outras voltas…

(Hoje estive, não por acaso, pensando que o “post” é mesmo um novo gênero de escrita. E não apenas a cronocrítica. Há nele esta liberdade vagabunda que deve agradar pessoas que, como eu, pensam que viver não é nada prático. Ler um livro como esse também não é. Escrever sobre ele, do mesmo modo, não apenas não é prático como é um tanto impossível e, por isso mesmo, fico feliz de estar nesse ponto antiprático da vida.)

Mas vamos ao livro e rapidamente, embora já estejamos nele. Pois que se trata de um post e, na internet, a expectativa do fast food é o mau tempero da leitura ansiado por todos, ou quase todos… Ou será que me engano? Sou da época em que se liam livros inteiros e duas ou três vezes. Este Nouvelles Impressions du Petit Maroc tem só 21 páginas. E que esperança esse número dá… O resto nessa sofisticação da edição bilingue é o texto original e uma entrevista tão sincera… Mas que longas, que densas, que pensamentos contém essas 21 páginas! Também eu quero escrever um dia um livro de 21 páginas.

Quem ler o livro verá que ao escrever desse modo me inspiro no próprio método de César Aira, sem conseguir, é claro que nem de longe, atingir o pathos que lhe move a pena.  Aquela sensação que se tem quando você acha que entendeu o autor… Nouvelles Impressions du Petit Maroc  torna esta questão boba como só ela.

Aira, afinal, começa contanto que estava no Petit Maroc (podem procurar no mapa francês) e escreve sobre o que lhe passa na cabeça. Entre a literatura que ele faz surgem mil (exagero) teorias do escritor e da literatura. Tem também a teoria da teoria. As teorias surgem espontaneamente, por exemplo, quando da observação dos barcos.  A observação mesma vem tornar-se uma daquelas pontiagudas reflexões sobre o tempo como “coincidência entre espaço e pensamento”.  Assim com seu livro que faz surgir o tempo em que nós, leitores, tanto seremos aconchegados quanto extraviados.

Aira, ao fazer literatura vai explicando as teorias que inventa ao sabor dos pensamentos que lhe surgem, acontecimentos à deriva. Afinal que para ele “o escritor é uma proliferação de teorias”.

Eu me identifico, pois vivo assim entre o que penso e o que penso… Tenho certeza que são essas teorias que fazem alguns encontros de mim comigo mesma, mas com um detalhe que torna tudo estranho: justamente quando não estou presente é que se encontram.

(Me preocupo se a dor de cabeça que sinto há alguns dias não será um sintoma de excesso de pensamento. De um pensamento tão concentrado que dói. E me desculpo pensando que só um filósofo pode ser feliz ao pensar assim.)

Mas ser filósofa é também só uma teoria que me faz pensar que tenho que começar a ler Nouvelles Impressions du Petit Maroc todo de novo.

E que a cronocrítica é apenas uma espécie espantada de literatura efêmera.

Para comprar o Nouvelles Impressions du Petit Maroc  (que tem esse título em francês, mas que está em bela tradução de Joca Wolff) vocês tem que entrar no site http://www.culturaebarbarie.org/ porque sendo uma editora pequenina não pode vender seu trabalho artesanal nas livrarias por aí que cobram sempre 50% do valor de capa de um livro. Pouca gente sabe, aliás, que é assim que funciona o mercado: 50% ou 60% para livrarias ou distribuidoras, 40% ou 30% editoras (sendo que esta paga a conta da produção…) e 10% para autores… e estes pagam o pato…

Mas o valor em dinheiro é sempre muito pequeno perto da aventura de um livro, a única mercadoria que nos redime da mercadoria.

(6) Comentários

  1. Aí, fiquei tranqüila agora. Eu não entendia meu amor por você! Graças a Deus, você mesma me deu a luz, amo você por Magnólia, A mulher de Costas, O Manto, Filosofia Pop, Olho de Vidro, ah, não resisti e comprei Filosofia Brincante, para ler com meus sobrinhos. Mentira comprei para mim! Terei todos os seus livros na minha biblioteca. Amo você também porque adoro o pensar, filosofia, e você é filosofia viva, pensamento vivo! Obrigada!

  2. a impressão é um mundo
    um mundo de vida
    de vida com fundo
    com fundo pintado
    pintado com lembranças
    lembranças de um futuro presente
    presente que sente
    que sente quando cria
    quando cria beijando
    beijando com amor sua dor e sua alegria

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