A crente que “vandalizou” o livro de Emicida e o que podemos aprender disso

A crente que “vandalizou” o livro de Emicida e o que podemos aprender disso
Detalhe da capa do livro “Amoras” (Divulgação)

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Nesse momento, em que se fala tanto dos limites da liberdade de expressão e dos controles necessários para se combater o discurso de ódio, ocorreu um episódio muito interessante que pode ser usado como laboratório para a maturidade do debate público sobre tais temas.

Um livro chamado Amoras

Emicida tem um lindo livro infantil chamado Amoras, muito lido e adotado nos lares e escolas do país. É para pequenos leitores, de 5 anos, que, por meio da história de uma menina negra em conversa com o seu pai, são apresentados a elementos das culturas africanas presentes no Brasil e a figuras importante da luta dos afrodescendentes no continente americano. Ocorre que não se pode falar de culturas africanas no Brasil sem mencionar a cosmologia dos iorubas, que sobreviveu apenas graças à resistência e à capacidade de adaptação do culto aos orixás. É assim que os orixás são apresentados, isto é, como parte fundamental da cosmologia de determinados povos africanos que vieram dar no Brasil, nas circunstâncias que todos conhecemos.

O livro de Emicida, insisto, não é um livro destinado à catequese ou à conversão religiosa de criancinhas. Mesmo porque, ao contrário das grandes religiões monoteístas, o candomblé jeje-nagô – e as suas derivações e transformações brasileiras – não é uma religião doutrinária, mas iniciática. Quer dizer que os escolhidos para a experiência religiosa plena (e quem escolhe é o orixá) vão sendo introduzidos pouco a pouco aos mistérios e segredos da religião, à medida em que, por meios de ritos, cerimônias e experiências místicas, vão adentrando os arcanos do universo religioso.

Numa religião doutrinária, espera-se que as pessoas sejam levadas à experiência religiosa por meio de uma doutrina revelada, escrita em um livro e pregada por alguém – essa é a essência das noções cristãs de “revelação” e de “evangelização”. Em religiões iniciáticas, ao contrário, são as várias camadas da experiência pessoal com o sagrado, conduzida pela mão da sacerdotisa, que levam ao conhecimento. E não o contrário.

Por outro lado, saber da cosmovisão de qualquer povo – de seus deuses, mitos, de sua ideia da origem do universo, do lugar do divino, do destino dos homens e da sua visão de mundo – não tem o condão de converter alguém, caso contrário a Ilíada seria considerado um livro religioso.

Amoras, em minha opinião, é livro para cuidar da autoestima e da autoconfiança de crianças negras e mestiças – e dos brasileirinhos em geral que reconhecem tudo isso como parte da sua identidade – e não para o proselitismo religioso.

A idolatria detectada

Não foi assim que entendeu uma mãe de Salvador, cristã, provavelmente evangélica, que, tomando-o como um livro religioso, resolveu implementar medidas preventivas para desmascarar os supostos erros ali contidos e evitar que as crianças fossem desviadas por tal doutrina.

Na escola de seus filhos, pais se reúnem para comprar livros infantis de uma lista oferecida pela instituição e os colocam na roda de empréstimos para as outras crianças. Pois bem, a mãe comprou Amoras porque, segundo ela, havia pensado que o livro tratasse apenas de questões raciais. Vendo que também mencionava orixás, decidiu que se tratava da apresentação de outro credo e que, como a Bíblia não seria igualmente apresentada, justo seria minorar presumidos danos que uma doutrina que ensinava outros deuses poderia causar às criancinhas.

Resolveu entregar o livro que comprara à escola, para ser lido por outras crianças conforme o combinado, mas tomou a providência de glosá-lo com advertências às crianças, denúncias de afirmações que considerava falsas (“é fake news”) e apresentar as fontes que a sua fé lhe diz serem as corretas – livros bíblicos.

Já na primeira página, ela reivindica que a doutrina bíblica vale mais do que as anotações sobre os orixás, chamando em causa um par de versículos do livro dos Salmos em que os israelitas contrapõem o Deus de Israel, que está nos céus e pode fazer tudo, aos deuses dos gentios, que, na verdade, são apenas ídolos feitos por mãos humanas – e não falam, não veem e não andam.

Depois, indica o livro do Êxodo, no qual Deus diz “Não terás outros deuses diante de mim e não farás para ti imagem de escultura”. Por fim, remete a um trecho da carta de Paulo aos Coríntios em que o apóstolo diz aos cristãos que fujam da idolatria.

Quem conhece minimamente o repertório do proselitismo evangélico no Brasil, sabe que se trata das citações bíblicas usadas geralmente para combater os católicos, que desobedeceriam ao preceito bíblico ao manter imagens de Cristo e dos santos em seus templos. Mas que também servem para a função básica de todo crente de qualquer credo, que é afirmar que o deus que ele cultua é não apenas o maior, mas o único deus verdadeiro. Na convicção dela, só existe uma religião, aquela que crê no Deus de Israel, o resto é pura idolatria.

Parece-lhe, portanto, da maior importância dizer às criancinhas que os orixás “não são deuses, mas ídolos africanos”, acrescentando que a religião verdadeira, a sua, os considera “anjos caídos”, fórmula eufemística para dizer demônios, claro. Há uma contradição aqui entre serem ídolos e ao mesmo anjos degradados, mas não importa. O que interessa é a admoestação que deveria servir para imunizar os petizes de crer em Amoras: “considerar ídolos como Deuses é praticar idolatria” e sustentar uma crença a partir de uma religião “anticristã” é “blasfêmia”.

Também confronta informações históricas, rebatendo que a África seja o berço da raça humana, uma vez que o livro de Gênesis não diz tal coisa. Por fim, denuncia que “ao longo dos anos a história da humanidade e do Brasil vem sendo modificada a fim de esconder a verdade para que vivamos no engano”. E propõe: “Não se limite a uma única versão das histórias”. E crava, ao final: “Eu não recomendo livros religiosos em escolas já que a Bíblia foi retirada de lá”.

Uma matéria sobre vandalismo e racismo

Eis os fatos. Na matéria que narra a história, no G1 Bahia, a repórter já começa afirmando que o livro teria sido alvo de “intolerância religiosa”, depois, que teria sido “vandalizado” e, por fim, menciona que foi um ato de “degradação da obra”. O mote estava dado. Na própria reportagem já consta a declaração de conselheira da OAB da Bahia que categoricamente declara: “Conseguimos perceber de forma muito nítida como o racismo religioso está penetrado em cada linha subscrita”.

Nos dias seguintes, houve uma gritaria contra o caso de “racismo religioso” e “crime hediondo” na Bahia, conclamações dos que querem a mãe evangélica processada por racismo e na cadeia e até houve quem reiterasse que as igrejas evangélicas fossem fechadas, como costumam ser assustadores os que mobilizam tochas e chicotes para supostamente defender a tolerância.

No meio disso tudo, felizmente, a serena resposta do próprio Emicida, em um vídeo publicado no Instagram, foi um alívio. Ele acerta no tom e no conteúdo: expressa sua tristeza pela intolerância, reitera com tranquilidade a sua intenção, propõe um mundo em que os vários credos sejam capazes de se respeitar, mas nem de longe mobiliza para uma Cruzada. Ao contrário, crê que pode escutar e entender o outro lado, até para reivindicar que quem pede para ser escutado e tolerado também escute e tolere.

Tal atitude contrasta com a enxurrada de gente que pediu prisão e punição, ou que percebe “de forma muito nítida” o racismo da mãe protetora evangélica, que enfrentou politicamente um livro que considerou idólatra, a golpes de frases, argumentos e versículos. Não deixa de ser curioso que, para alguns, destruir estátuas não seja vandalismo, mas um statement político, enquanto glosar um livro com contestações baseadas na Bíblia não seja um ato político, mas vandalismo e degradação da obra.

O que isso me faz pensar

Minha visão de mundo se alinha mais com Amoras e Emicida do que com a evangélica fundamentalista que confundiu cosmologia com doutrinação e resolveu proteger criancinhas de livros infantis. Mas não é disso que se trata aqui.

Há duas ordens de consideração a serem feitas.

A primeira diz respeito à tolerância e ao esforço de reconciliação nacional que se impõem nesse momento. Há sentido em arrastar algemada para uma delegacia uma mãe evangélica de criança do ensino fundamental, por crime de racismo, apenas porque ela resolveu usar páginas de um livro para defender politicamente um ponto de vista, que pode até ser errado segundo uma lógica secular, mas que certamente é defendido por boa parte da população das periferias deste país? Ou linchá-la e insultá-la de ignorante, preconceituosa e má, como já o fizeram? E isso com que propósito? Para defender com tochas a tolerância religiosa e racial? Não é contraditório?

Além disso, que tipo de mensagem se oferece aos milhões de evangélicos, fundamentalistas ou não, que compõem esse país e que têm sido o fiel da balança nas decisões eleitorais, além de formarem grandes bancadas legislativas para defender a sua agenda? Que iremos atrás de toda mãe superprotetora, de toda pessoa convencida de que só o Deus de Israel é Deus, e de que todos os outros são ídolos, dos que acham que se a Bíblia não consta nas bibliotecas das escolas, então nenhuma outra religião tampouco deveria ser mencionada? Isso não é pedir que eles se entrincheirem cada vez mais, formem bancadas cada vez mais fortes e aí, sim, sejam eles a vir atrás de nós assim que puderem?

Por fim, há o argumento da liberdade de expressão. Será que pessoas que acham que uma mãe evangélica de Salvador deva ser presa por racismo apenas por ter dito que os orixás são anjos caídos seriam capazes de propor normas razoáveis sobre discurso de ódio e limites da liberdade de expressão? E essas normas “razoáveis” seriam capazes de acomodar algum nível de divergência legítima e desacordos permanentes na nossa sociedade, ou apenas a posição dos progressistas seria assumida como respeitável?

Ora, o que a mãe evangélica fez foi grafar em 8 páginas de um livro, que ela mesmo comprara, opiniões avaliativas e algumas asserções factuais baseadas em suas convicções. Opiniões, mesmo erradas ou estúpidas, atendem aos interesses e aos direitos da livre expressão, mesmo quando estas constituem juízos impopulares e contra a corrente, mesmo quando envolvem hostilidade a grupos raciais ou religiosos específicos.

A liberdade de expressão não foi estabelecida para proteger a opinião progressista numa sociedade progressista, a opinião majoritária e simpática, a opinião epistemologicamente correta, mas a liberdade de pensamento, a diversidade de pontos de vistas, a liberdade humana, enfim. Se citações de uns salmos e epístolas num livro equivocadamente considerado religioso não são protegidas pela liberdade de expressão, o que mais seria?

Para pensar.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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