Contra a violência de Estado: fazer história juntas

Contra a violência de Estado: fazer história juntas
Myrna Lazcano com as filhas no momento em que retorna aos Estados Unidos após ser deportada (Foto: Reprodução)

 

De Nova York, a palavra e a luta sempre adquirem uma nuance internacional, porque viemos de diferentes territórios. Precisamente por essa miscelânea, essa convergência de lutas e intensidade dos últimos meses (marchas e mobilizações antirracistas, violência policial, pandemia, eleições nacionais), decidimos partir da experiência situada de Myrna Lazcano. Sua palavra abarca muitas das resistências que vivemos em todos os territórios, e também coloca sobre a mesa as interconexões da violência que nos atravessa como mulheres, bem como seus limites.

Myrna Lazcano é uma companheira que em 2013 foi detida pelo ICE (Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos), deportada e separada das filhas. Ela lutou e conseguiu retornar ao país em uma caravana. Hoje, no Harlem, luta com outras mulheres para modificar as leis de imigração. Leia o relato de Lazano abaixo.


A violência que recebemos do Estado, todos esses castigos, são aqueles que também se davam na inquisição: são formas de tortura contra nós. Por isso, é bom falar sobre esse assunto em diferentes frentes: para que não se normalize tudo de novo. Sabemos que o governo tem como objetivo oprimir e favorecer quem já tem uma herança, uma categoria… os bilionários.

É como quando entram na cozinha e borrifam veneno nas baratas. É assim que eles nos tratam e tentam nos eliminar. Eles nos prejudicam, mas temos que mostrar que deve haver respeito e igualdade e, acima de tudo, que as fronteiras e as leis de imigração que eles mesmos criaram têm que desaparecer.

E não é uma só mulher que vai fazer isso, somos todas. Por isso precisamos nos unir de diferentes formas, como estamos fazendo. Tudo a partir de nossas trincheiras, colocando um grão de areia com o que sabemos fazer.

Conversamos com uma colega mantida em cativeiro pelo ICE e ela disse: “Eles vão se arrepender. Olha só, não se importam de ter salário para chutar mulher e com esse dinheiro comprar brinquedos para a família e passear .” É algo muito terrível, mas me dá muita esperança e alegria ver que nos unimos e lutamos

Quebrando círculos e encontrando padrões de violência

Quando começamos a ouvir que estavam ficando doentes com a Covid lá dentro, na prisão, ficamos tristes e com raiva. Parece que esse sistema, que não nos ouve, ganha com a desesperança e a desmotivação.

Pouco antes do início da pandemia, quando a mãe de uma amiga da minha filha acabava de ser presa, ela sentiu que tudo se repetia. Ela me disse: “Eles fazem o mesmo que fizeram com você. Quantas vezes mais vamos tolerar isso? E eu dizia a ela: “Filha, prometo que algo vai acontecer. Você tem que aprender a lutar. Nós nos juntamos às mulheres e algo vai sair, filha”. Também falei com a mãe da mulher aprisionada e perguntei-lhe “como se sente?” e ela disse “impotente. Não consigo encontrar uma forma de falar com as minhas netas, apoiar-nos, continuar… ”.

Tudo aquilo estava me revelando o quadro do que minhas filhas passaram quando, após a prisão e a deportação, lutei para voltar. E quando voltei vi como tinha sido para elas: tanta dor e uma delas querendo sair de casa. Comecei a buscar apoio, porque pensei “quero que minha filha tenha a chance de estudar, de ser uma mulher independente. Não quero que ela seja uma mãe de 15 anos que vai pedir auxílio público quando o marido a deixar.” A história que conhecemos. E logo, por dois anos, nós lutamos, e ela ficou.

E, quando ela se formou, senti que ela queria lutar, apoiar outras pessoas,  trabalhar em um hospital. E ela está estudando línguas indígenas porque a maioria das pessoas que sofrem com isso são indígenas. E é por isso que, ouvindo a avó com sua filha presa, ela me contava a minha história, a história da minha filha. E a necessidade da luta, de nos unirmos e lutar. Quebrar o círculo.

Todas nós lutamos contra o governo e sua sequência de violências. Uma sequência que vemos desde a infância, em casa, nas discussões, nos golpes. Uma violência que ocorre entre as universitárias. Precisamos unir os diferentes tipos de violência, porque é um padrão. Eu penso: finja que são réplicas. O maior exemplo é o governo: quem nos governa implementa violência para nos manter divididos e para não lutarmos por aquilo que é importante ir contra, contra o que nos prejudica. É como um istmo: os epicentros estão em um lugar e então começam a tocar as vibrações em graus menos arriscados. A violência doméstica também é muito econômica e toda a economia vem do governo. É muito visível.

Trata-se de uma forma de nos oprimir e quando a vivemos, não a vemos. Eu a vejo agora. Eles nos jogam para fora como se estivéssemos brigando o tempo todo e nos culpam para depois dizer “Essa gente só se dedica a isso, a lutar”.

Desaprendendo e resistindo às novas formas de escravidão moderna

Precisamos de mais luta para desaprender o hábito de não ver. Acredito na afirmação de que todas as pessoas têm o direito de não ser punidas: as batidas do ICE, prisões e deportações desnecessárias. Eles gastam muito dinheiro que poderiam ser dirigido à educação. Tanta desigualdade e tanto excesso de poder causam a difamação de mulheres e migrantes, o que cria armas para o racismo.

As leis e as pessoas por trás delas defendam o sistema que existe. E não é que esteja estragado, como dizem alguns: é que está desenhado para que haja uma forma de escravidão moderna, para que não possamos alcançar nada mais, para que nos coloquem todos os obstáculos.

Às vezes me sinto impotente por não falar inglês, não saber a lei, só que não é apenas falando inglês ou conversando com chefes e representantes que se consegue algo, mas também dizendo: “Aqui está essa pessoa, essa mulher. E, quando as peças se juntam e marcham na mesma direção de ideias abolicionistas e libertárias, grandes coisas podem acontecer, e isso nos dá satisfação, alegria, a nossa autoestima sobe. Se foi possível com uma, continuemos com outra companheira… podemos com todas elas, com todas as que vierem. Se nos ligarmos e nos colocarmos à disposição para libertar todas as mulheres, vamos conseguir. “Até que a dignidade se torne habitual”! Se não vivermos com dignidade, nunca haverá paz.

Lazcano: As fronteiras e as leis de imigração que eles mesmos criaram têm que desaparecer (Foto: Reprodução)

Lutando nós geramos apoio e plantamos sementes

A alguns sobra e a outros falta, e esse sistema nos obriga a migrar. Tenho saudades das minhas galinhas, do meu quintal. A violência é gerada pelo capitalismo e pelo tempo que se passa entre promessas. Eu vi presidentes passarem e sigo aqui esperando a mudança. Eles querem nos manter distraídas enquanto continuam enchendo os bolsos.

Quando voltei, após minha deportação, me senti apática, deprimida. E você tem que ajudar. Como libertar outras mulheres? Atacando esse sistema. Ainda que paralisada, quando procuramos os advogados eles nos perguntam “o que posso fazer?” e dizem “ah, assim é a lei.”

Leis que carregam os mesmos interesses. E é aí que paramos. As empresas pagam pelas campanhas e agora os centros correcionais têm uma posição na bolsa de valores, pagam pela campanha daquele que querem que continue com o lema das detenções e deportações em massa. É uma fortuna! Quanto pagamos em fianças? Eles vivem da dor dos outros. Porque sabem que as famílias buscam o dinheiro para a fiança dos seus entes queridos, que farão todo o possível para retirá-los de lá e que esse dinheiro vai para as prisões. Eles se tornaram bilionários com a nossa dor. Como derrotá-los? Eles têm o poder do dinheiro.

Mas se lutarmos, geramos apoio e plantamos sementes. Por que você quer fazer isso quando sai? Porque quem viveu isso na própria carne quer mudar tudo, nós queremos continuar. Algumas pessoas se rendem, o que também é válido. Eu já estive a ponto de desistir, mas consegui continuar e semear aquela semente de liberdade e luta em cada uma das pessoas que encontrei. Quantas mulheres ficaram sem família por causa da deportação? Quanto trauma eles estão deixando em tantas pessoas?

Eles semearam a violência sobre nós, eles implementaram o medo em nós. Mas como uma companheira me disse: você tem que lutar. Saia da zona de conforto. Torne o impossível possível. Isso faz parte da luta: tornar possíveis coisas impossíveis. Se estivermos sozinhas, não podemos. Mas se estivermos juntas, alcançamos muitas coisas. Agora não temos nada a perder na luta. Este país já não se importa, este mundo já não se importa. O que mais podemos fazer? Lutar!

Este texto é resultado de
uma parceria entre a Revista
Cult e a La Laboratoria:
espacio transnacional de
investigación feminista

 


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