Conspiração da permissividade (2018-2022)

Conspiração da permissividade (2018-2022)
(Foto: Agência Brasil)

 

Eu sei o que quer dizer não voltar.
Primo Levi, “Pôr do sol em Fòssoli”

I
Preâmbulo
A meada da morte

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O quadriênio 2018-2022 selou o pior período político da história do presidencialismo civil brasileiro. O futuro não deixará de saber que o apoio ativo das Forças Armadas foi sine qua non para esse resultado.

Os estertores recuados do governo federal mais macabro depois dos 21 anos de chumbo e botas, ao contrário de nublar a meada dos fatos, denunciam-lhe, à guisa de balanço, a autoria inconfundível.

  1. A extrema precarização social (induzida pelo governo federal) atirou as classes trabalhadoras e desempregadas ao flagelo da fome e insegurança alimentar, bem como às incertezas sobre a própria moradia – para citar apenas dois direitos fundamentais, que o Estado, ao invés de sabotá-los, deveria proteger. São quase 60% de brasileiros desassistidos em suas necessidades básicas; e, como reverberação remanente, os números crescem a olhos vistos, nas praças e ruas, sob marquises e pontes, nas periferias. Nos últimos anos, essa alarmante tendência teve acréscimo de 14 milhões.
  2. A partir do final de 2018, houve liberação coletiva, mais indiscriminada e impune de pulsões obscuras para destruição da vida indígena, negra, de mulheres e LGBTQIA+.
  3. Em 2020 e 2021, milhares de pessoas perderam desnecessariamente suas vidas devido ao atraso federal doloso no processo de vacinação contra a Covid-19, para caucionar tempo de negociata bilionária em torno de remédios cientificamente nulos contra o novo coronavírus (como a azitromicina, a cloroquina, a hidroxicloroquina e a ivermectina), entre outros fins escusos.
  4. Somam-se assassinatos e agressões a principais adversários políticos por partidários do extremismo bolsonarista.
  5. Ameaças antidemocráticas, fake news e mentiras como estratégia de Estado (e que, não por outra razão, também alvejam) arrematam os adornos plúmbeos do período.

Como se sabe, a sanha necropolítica do neofascismo brasileiro – a fiada do esparso cenário acima – permanece, essencialmente, conforme origens europeias. Mutatis mutandis, ela protagoniza, de forma miliciana e conspiratória, os dois métodos de imposição de desaparecimento: a morte física, com eliminações sumárias (por revide desproporcional e queima de arquivo) e a morte simbólica, com arruinamento de reputações (de pessoas, marcas e empreendimentos) via linchamentos digitais, devassamento de sistemas, ameaças convencionais, invasão de território alheio etc.

Essas táticas aludem ao destino – emblemático – de Marielle Franco (para eliminar “resistências” à horda miliciana, já no início de 2018), de mestre Moa do Katendê (por apoiar Fernando Haddad, candidato do PT à presidência da República, no mesmo ano), de Antônio Carlos Rodrigues Furtado (por divergências partidárias), de Adriano da Nóbrega (para “resolver” a posse de informações sem controle), de Marcelo Arruda (porque era dirigente do PT), de Bendito Cardoso dos Santos (eleitor, em 2022, do agora presidente Luiz Inácio Lula da Silva), entre outros casos indeléveis.

Os álibis de todos os casos obedecem ao mesmo norte: extermínio, no extenso rastro de violências corporais e simbólicas sem resultado fatal.

Esse pântano necropolítico, esboroando limites penais incompatíveis com o Estado de Direito, fez o bolsonarismo assassino reinventar, como factoide crepuscular de governo, o delírio soluçante de um terrorismo ultradireitista que o país não conhecia ou, ao menos, não via há mais de quatro décadas. A invasão e destruição de dependências da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal (STF), em 8 de janeiro passado, sucedeu o flagrante da tentativa de um bolsonarista explodir, 15 dias antes, um caminhão de combustíveis nas proximidades do aeroporto de Brasília.

Corruptela tardia do atentado ao Capitólio norte-americano, ocorrido em 6 de janeiro de 2021, o factoide terrorista dominical dos apoiadores do ex-hóspede do Palácio – factoide anunciado há dias em redes sociais – constitui precedente político gravíssimo, tanto em natureza quanto pelo eventual desencadeamento, a fundo perdido, de efeitos imprevisíveis em futuro mediato. Obviamente, tal tendência criminosa deitou raízes nos duradouros acampamentos em frente a Quartéis Generais (QG) de vários estados e no Distrito Federal – improvisos serpentinos de reverência a propensões golpistas e de idolatria a tiranias.

Ressentidamente inconformado com os rumos eleitorais da República, o imaginário homicida e vandálico da rusticidade bolsonarista resolveu mostrar o que, em essência e no limite, sempre foi: punhal e machado, querosene e dinamite, arma de fogo e bomba – a explicitação mais infantil e banal do autoritarismo.

II
Conspiração da permissividade
Blindagem normalizada da sociopatia sistêmica

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Esses rasgos de violência política passaram a cirandar o mundo, levando do Brasil a imagem de nação marginal (no duplo sentido da expressão, o literal e o supremacista-pejorativo).

Conforme enésimas ênfases o disseram, arroubos, exasperações e pantomimas executivos e ministeriais, que avexaram a tradição diplomática nacional, convidaram – como única alternativa decente – as lideranças dos países desenvolvidos a isolar o Brasil. Por certo, esse fato muito derivou da desconfiança global em relação à inimaginável aceleração desmatadora na Amazônia. O posicionamento irresponsável do ex-inquilino do Palácio e sua troupe durante a pandemia de Covid-19, entretanto, foi decisivo nessa direção – os procedimentos ameaçavam o mundo inteiro –, junto com outros indicadores irradiados.

Só a farra tanática da irresponsabilidade pró-virótica teria sido motivo suficiente para o impeachment. Por pretextos incomparavelmente menores, duas presidências foram sacrificadas desde 1985. A vergonha internacional mais profunda foi que o destronamento mais aguardado não veio.

O Brasil figurou o país engavetado, com rompantes e silêncios os mais abjetos na história republicana. O lema do “deixa que eu douro, tu lanças ao aterro” fez a carga do tempo correr a vistas grossas, na frequência estável da iniquidade.

Tudo o que colocou substantivamente em risco o presidente e sua família, bem como o governo como um todo, foi barrado no cinturão ad hoc das mesas do Congresso Nacional, da Procuradoria Geral da República (PGR), do Poder Judiciário (em instâncias inferiores ao STF), da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), entre outros órgãos.

O país, vírgula. Trata-se, evidentemente, de um certo Brasil, mais esparramado, a começar pelos porões da Casa Grande, locus social tão inconfundível quanto nublado dessa tropa de choque hábil e militante, cuja existência, como desenho epocal de Estado, ofende – do cerne à letra – a Constituição Federal de 1988. Galvanizado pelo “mercado”, pelos sistemas industrial, comercial e financeiro, por meios de comunicação corporativo-conservadores, pelo reacionarismo evangélico, pelo fomento agrobusiness e pelo assédio da indústria de armamentos, esse Brasil tecnocrático, modulado na e por hordas digitais, colaborou para coibir, estancar, desidratar, desanimar, protelar e/ou simular investigações e apurações.

Tal ceifa diuturna – a de um governo militarmente blindado, milicianamente blindado, burocraticamente blindado – demonstra o quanto o neofascismo bolsonarista (laico e evangelizado, do campo à cidade, das ruas às redes) foi, ao seu modo, competente (até a véspera do pleito de 30 de outubro de 2022) na malandragem institucional de embrulhamento da ordem republicano-constitucional em proveito próprio.

Colaborou para o rol dessas corrosões a paúra política de muitos em ficar mal com o bolsonarismo como força eleitoral. Arriscar a sorte a ponto de ter a cabeça cortada e/ou ser jogado à fogueira da visibilidade mediática derrui capital de votos em pleitos subsequentes. Quando não, isto: “Quieto!”, sopra a covardia de cartucheira. “Lembra-te da tua família”. Quem tem dúvidas sobre se o medo de homicídio ou de arruinamento da reputação (por hordas milicianas nas redes) jogou – e ainda o faz – papel relevante nesse processo não conhece a história política brasileira ou cabulou páginas da imprensa nos últimos anos.

A forma de governança que, no vale-tudo pró-pandêmico, condicionou atmosfera social de terra sem lei em zona ancestral de mata, a ponto de inspirar assassinatos como os do jornalista britânico Dom Philips e do indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira, explica, em idêntico enquadramento, a fleuma institucional de resistência a apurar esses crimes com urgência e adequadamente in loco, exceto por ordem judicial, mediante mobilização do maior contingente especializado possível e com base nos recursos tecnológicos necessários.

Historiografia e imprensa do futuro certamente darão detalhes a respeito dos fantasmas envolvidos ao longo do quadriênio da morte, na múltipla forma das represálias (seja do patrulhamento civil e miliciano, seja da seara fardada). Esse par de biênios está colado à biografia de seus responsáveis.

A blindagem do tal cinturão voluntarioso, assentada no sufrágio de 2018, expressa duas coisas entrelaçadas: uma enorme fragilidade e, por isso, a autoproteção centuplicada, para rechaçar contrapressões políticas. Uma atuação nepotista-fisiologista inveterada garantiu sobrevivência durante a tempestade contínua.

Esse cinturão oficial, no todo, armou-se (a palavra é do ramo) como conspiração da permissividade. A expressão remete a uma invenção tanatofílica dessa confraria política, jurídica e moralista do submundo, sob a chantagem do desaparecimento iminente. Do gargalo de elite a uma sociedade de joelhos, a conspiração da permissividade nomeia a mísera condição de um país sorrateiramente constrangido pelo poder das armas e molestado pelo medo. Trata-se, desde o ângulo de visão da sociedade civil organizada e indignada, da alcunha responsiva a uma condição estrutural de descaso, em escala nacional. (Os parênteses ao lado do título deste artigo indicam, na frequência obituária, o desejo de um ciclo de vida irrepetível – memória do nunca mais.)

O questionamento retórico da ordem globalista vigente por nacionalismos de extrema direita e a aguda polarização política nas últimas décadas dilataram o corolário semântico do vocábulo “conspiração” e de adjetivos derivados. De certa forma, uma nova mobilização do termo para confrontar a extrema direita não deixa de ser sintomática. A mais complexa das configurações conspiratórias é a silente; e a manifestação que, insidiosa, prescinde de palavras é tão eficaz – e enreda tanto – quanto a que as submete ao cálculo antípoda, o da estratégia verbal politicamente orientada. Por outro lado, a possibilidade de o ápice tanatofílico de um consórcio de forças permissivas derivar de urdidura sistemática de travas, suspensões e rechaços é tão falsamente paradoxal quanto o fato de a anti-humanidade (em natureza e em extensão) da toada descrita surpreender não apenas os desavisados.

A evidência dessa urdidura demonstra o quanto a necropolítica neofascista do bolsonarismo sequestrou e submeteu o regime democrático (e a quase totalidade de suas instituições) ao poder infantil e covarde dos símbolos de aço e fogo, sob a testa de media coniventes e em paridade cúmplice com correntes evangélicas, com a prosperidade bovina e com a especulação latifundiária. Não espanta, igualmente, que esse tenha sido, em síntese, o mesmo negócio político da destruição garimpeira e madeireira em terras ancestrais e quilombolas.

A leitura ética não poupa tinturas calcadas. Fosse uma dramaturgia desqualificada sobre a estrutura dinâmica dessa condição nacional lamentável – uma sociopatia sistêmica e normalizada –, haveria, sob a ribalta, um borrão surrealista entre vilania bestial, servidão lacaia e pusilanimidade contagiante, com apoio, na plateia, de aplausos macabros e alta dose de desprezo militante e indiferença tácita.

Sem prejuízo de casos meritórios entre partidos de esquerda e organizações acadêmicas, jornalísticas e policiais, excepcionaram-se do gargalo de ilicitude, com destaque épico e marcante, poucas cúpulas ou instâncias, especialmente as jurídicas, como, pelo Estado, o STF, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e a CPI da Covid-19 e, pela sociedade civil, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

Nenhum meio de comunicação corporativo e conservador, mesmo com crispação noticiosa açucarada ou sazonal, escapou de viger (e de lucrar) como caixa de ressonância sígnica da conspiração da permissividade.

III
Vulnerabilidades institucionais da República
Revisão sistemática e urgente de mecanismos políticos e jurídicos

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Conforme antes sinalizado, um país que não consegue se livrar de um pró-genocida da Presidência da República já nos primeiros meses de formação de provas robustas sofre de graves intempéries nos meandros de seus mecanismos políticos e jurídicos, incluindo a competência e atuação de agentes em certos cargos decisivos (como a cúpula do Ministério Público Federal [MPF]] e da PRF) e/ou com mandato popular (como nas mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal).

Exceto se se quiser que a história política nacional reviva a mesma escabrosidade no futuro, a celebração duradoura da vitória eleitoral da vertente de centro-esquerda em 2022 não pode ofuscar jamais o excessivo desprezo pela vida com que, num feixe de coincidências deletérias, certos lugares-chave da República foram ocupados por profissionais mais que inadequados, com intenções dolosamente convenientes, num quadriênio civil tão inédito quanto lúgubre.

Milhares de vozes pedem penalidade retroativa exemplar. Guardam razão: a urgência do ciclo completo de investigação sobre as depredações terroristas em Brasília, em 8 de janeiro passado, não pode deslustrar a prioridade da responsabilização republicana ligada a desatinos do quadriênio. Ao contrário, possa o estrondo vandálico na capital do país ensejar, como estímulo extra, a irreversibilidade da retroação do arco judiciário em curso. Esse posicionamento se alinha ao movimento social de recusa a conceder anistia a quem carrega culpa necropolítica nas costas.

A flexão política da hipérbole a subtrai da exclusividade de mero recurso literário ou retórico. Exorbitando de propósito a matemática para lapidar a sinédoque, são três dúzias de brasileiros politicamente graúdos, travadores e inoportunos numa terra de quase 220 milhões de habitantes, para mais da metade eleitoral da qual foi insuportável o enraizamento da rede genocida na principal cadeira da República. Que a matemática dessas dúzias, por mais forçosa que seja, preveja, nelas, a sombra de quase 50% de eleitores não reflete senão a lógica obscura das placas tectônicas de um Brasil abissalmente desigual desde sua fundação.

A superação desse estado de exceção invisível pressuporia per se ocupação permanente das ruas por milhões de pessoas, com interesse direcionado ao destronamento. Massas, entretanto, também suspendem preceitos de coragem política quando abatidas pelo fantasma da morte. A pandemia foi – e ainda é – experiência amarga com certo efeito autojustificatório.

O avesso da história ensina inexistirem temores que resistam a insatisfações contínuas. Desde Freud, a sociopsicanálise assevera que, na trajetória milenar do recalcado, o que sobrevém à tona o faz com força intensificada. A insuportabilidade foi reconfirmada nas urnas.

O argumento de que o impeachment do presidente teria espargido incertezas demais sobre o futuro imediato (e militar) do país certamente preserva sensibilidade a nuances do processo político. Entre pendores tíbios, no entanto, acumula, bambo dos pés, conhecimento diminuto sobre as camadas sociais do inferno: o fato de, nessa metáfora, haver franja menos pior que outra embasa, longe de alentos, uma ética do menor dano estrutural – no caso, sob cerco resistente e assíduo de mecanismos republicano-democráticos cujos freios e contrapesos jamais podem vacilar; e, ao fim e ao cabo, tais injunções funcionaram bem em 2022, autodemonstrando a que vieram, à luz da Constituição Federal de 1988.

Que o problema tenha sido dolosamente empurrado para solução pelo rito de sufrágio, com espera secular de quatro anos – quando cerca de 100 pedidos de impeachment (não duplicados) trouxeram evidências de ilícitos penais, civis e administrativos –, não aclara senão, por outro ângulo, que, além da arfagem desassistida de uma Manaus inteira no início de 2021, 400 mil pessoas foram, no ápice da contaminação pandêmica no país, cobaias fatais da experiência permissiva do cinturão necropolítico do bolsonarismo – uma crueldade sistêmica que se soma, em mais de 500 anos, à do genocídio indígena, à escravatura de afrodescendentes, ao assassinato sistemático de pares da comunidade LGBTQIA+ e a todas as formas de violência (fatais ou não) contra mulheres, idosos e crianças.

A riqueza factual foi, do início ao fim, nítida. O governo federal, junto com estados e municípios alinhados, aproveitou as condições sociossanitárias da crise institucional que ele mesmo induziu entre os três Poderes para reinar pelo medo, de maneira totalmente impune. Qualquer adolescente que tenha aprendido o valor da desconfiança em relação a narrativas sabe que o conjunto da obra significou estratégia arrogante de governança de vida e morte. O relatório final da CPI da Covid-19 fez bem em corroborar essa tese.

Anuncia-se agora, como tendência há muito aguardada, o mutirão judicioso para acerto de contas com o passado – ou seja, fora do ciclo do tempo –, punindo quem, em rede, escapou da legislação. Se, do ponto de vista político, jurídico e ético, esse acerto de contas é necessário – todos os implicados devem ser responsabilizados –, do ponto de vista histórico, o fundamental, no entanto, já transcorreu: o calendário exibe que um sociopata institucionalmente arruaceiro, sob lastro em mortes no currículo político, conseguiu a façanha de completar o mandato; em léxico similar: amparada por grita solidária, a história das telas viu, inúmeras vezes, um vândalo sociossanitário deitar e rolar nas e por ruas, praças e redes, estimulando, com deboche, a multiplicação contaminadora.

Ao longo do quadriênio, autoridades republicanas flagraram partidários e simpatizantes fanáticos nas encostas da cordilheira – e isto já indiciava contravenções no andar superior –, mas amargaram descompasso na direção das pegadas do cabeça, protagonista-mor. Nos marcos da distinção originária de Machado de Assis, que sempre abraçou as peles violentadas na história, o Brasil real com medo da morte foi também aquele que assistiu, boquiaberto, ao Brasil oficial realizar de tudo um pouco fora do perímetro constitucional; e, ainda, abominando dissimulações espertalhonas (as do segundo país), escasseou no regozijo de ver, em tempo, a lei alcançar a fonte. Acenos risonhos em “motociatas” (como as de Benito Mussolini nas décadas de 1920 e 1930) testemunharão esse surrealismo cínico para sempre, sob panos quentes da oligarquia da comunicação corporativa e conservadora, que esbanjaram notícias “objetivas” e “imparciais” a respeito.

Como em 2016 e 2018, os mecanismos autossaneadores da República mostraram-se despreparados para desmontar na origem e/ou condenar na sequência, por determinação literis, a concatenação criminosa de interesses que preservou, encastelada no Estado, uma corriola enodoada por sangue e corrupção, vencidas as resistências em contrário. Em vários pomos articulatórios, a República apresentou vulnerabilidades (quase fatais) que a fizeram refém de uma flacidez política, jurídica e moral (a da tal corriola) tão acachapante que atirou a todos num baile sem máscaras à luz do dia, sob tom monocórdico constante. A gravidade justifica a ênfase: em cumprimento a princípios estratégicos elementares, instâncias federais de Estado foram neutralizadas por apaniguados a mando, assessoradas por conhecimento especializado e sob comissionamento público.

Como se não bastasse, no último trimestre do período, a sociedade brasileira assistiu, pela enésima vez, a rangeres golpistas do Palácio do Planalto e adjacências, bem como de meios digitais ultraconservadores – todos saudosistas da ditadura militar, dos Atos Institucionais e da tortura. Não cansaram de sobrepor absurdidades à deturpação da liberdade de expressão, com ameaças renovadas ao resultado do pleito de outubro de 2022, em prol da perpetuação dos derrotados, via “intervenção militar” sob suposto amparo constitucional.

A urdidura da permissividade – mecenas procedimental da necropolítica bolsonarista como ideologia de Estado – patenteia o quanto os mecanismos institucionais da República, garantidores de rechaços legais à iniquidade, precisam ser sistemática e urgentemente revisados e protegidos, visando coibir, por todos os recursos democráticos à disposição, a reiteração trágica de experiências societárias similares: supremacistas de qualquer matiz não podem ter hegemonia nem política nem jurídica – full stop. A costura resolutória dessa gramaticalidade institucional deve se fazer sem que a arquitetura dos remendos condicione vazão para novos esgarçamentos extremistas.

IV
Espalhamento organizado da extrema direita
Esboroamento eleitoral da blindagem permissiva
Recusa popular de tutelas militares

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Excedem obviamente razões para essa preocupação. A história das excrescências políticas reporta que, para a consecução de um sinistro como o do quadriênio 2018-2022, no rastro do golpe jurídico-parlamentar-empresarial de 2016, basta um grupo coeso, com lealdade e cumplicidade atuantes, para projetar halo de ameaça e temor numa geração inteira, com influência na posteridade.

O Brasil atual não dispõe somente de um bando, mas de inúmeros, em ramificações da extrema direita. O resultado dos pleitos de 2018 e 2022 provou não estarem em uma ou outra região apenas. Algumas podem até concentrar matrizes de comando e condução, como pivôs estratégicos de sinalização sobre o direcionamento da prática militante a incontáveis redutos de operacionalidade. O núcleo duro da horda, porém, tem cauda longa de seguidores e simpatizantes. Sua existência e suas ações, nas ruas e nos nichos digitais, somam idênticas consequências ameaçadoras.

Até meados da segunda década deste século, esses grupos estavam espalhados e oclusos, em todos os estratos sociais, com ou sem porte de arma, dentro e fora do Estado. Foram organizadamente catalisados pela fleuma neofascista do ex-inquilino do Palácio do Planalto; e continuarão a sê-lo (pelo próprio e/ou pelos candidatos a substituí-lo). Empoderados e cada vez mais dilatados (conforme ilustram os acampamentos bolsonaristas em frente a QGs), os grupos infestaram, comodamente, todas as instituições, seja no plano visível, seja em capilaridades secretas e igualmente insidiosas, na direção da produção política e social do inferno, na cabal trivialidade dessa metáfora.

Tão aflitiva quanto precipitada, a inexperiência política em contextos de polarização aguda encontra horizonte dogmático justificado para concluir que a tênue oscilação progressista do Brasil atual vive situação histórica compatível com a dúvida sobre se não seria desejável um “exército” – a terminologia é esta, por mais problemática que seja: um exército permanente e em rede – para forçar a rusticidade extremista a recuar de vez, dentro e fora das instituições: à sombra do apadrinhamento nazifascista originário, ela cresceu tanto como movimento popular nos últimos anos que, depois de privatizar o verde-amarelo, se supõe dona do país. Que tal tendência persecutória – na verdade, uma polícia política e social da cidadania, de rediviva patrulheira no coração da vida cotidiana – sequer se realize em plano sutil. A única alternativa republicana possível a todas as formas de autoritarismo é a educação política incondicional e de longo prazo para a democracia como valor universal.

A meio caminho, na contramão do cinturão necropolítico bolsonarista, o resultado do processo eleitoral de 2022 evidenciou que a sociedade brasileira, alerta, não investiu na vitória da frente de centro-esquerda senão para iniciar a desidratação oficial e dispersão social do bando ao testemunhar, entre outras coisas, que não teme militar linha-dura, nem milícia encaniçada, nem civil com arma à mão. A ruptura – do fundo do poço à crosta do pântano – com o medo socialmente espargido proveio através do que o neofascismo fez de tudo para abolir, e não conseguiu: o voto. Uma sociedade progressista e resistente (não necessariamente organizada, em sentido estrito), no interior de condições históricas e políticas flagrantemente reacionárias, asseverou, em discurso internacional sem verbo contra a puerilidade de rompantes e cinismos extremistas, que não deseja mais viver sob esse medo, nem permanecer refém dele.

Em outras palavras, o transcurso do tempo lacerou a conspiração da permissividade tanatofílica; esboroou, pela força épica de um processo eleitoral inesquecível, a blindagem da necropolítica federal; embrulhou e ejetou o neofascismo do Poder Executivo.

A administração do país, agora sob vertente de centro-esquerda, tem colocado – e assim tende a continuar – as caixas segredadas à prova da análise pública. Somente conveniências inesperadas as fecharão antes que a última denúncia seja apurada.

Independentemente disso (e do aparente paralelismo de temáticas), caso não haja, nos próximos anos, hegemonia comprovada de grupos progressistas nas Forças Armadas, a sinuca de bico militar para a qual a extrema direita parece ter arrastado a democracia brasileira tampouco poderá ser dirimida mediante escambo político degradado (isto é, constitucionalmente extemporâneo), o que implica descartar qualquer tutela ou transigência militar (explícita ou tácita) em troca da possibilidade de governar para famintos e miseráveis, trabalhadores e desempregados. Do contrário, o governo eleito corre o risco de implementar uma social-democracia sob condições pós-coloniais típicas de uma República sob a alucinação do comunismo imaginário como álibi institucionalmente caucionante, como se o Brasil popular tivesse sempre de se submeter a supostos proprietários.

Eugênio Trivinho é Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.


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