É abril: vamos comemorar Winnicott

É abril: vamos comemorar Winnicott

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Celebramos em abril, com muita alegria, o aniversário de Donald Wood Winnicott, nascido há 127 anos. Com certeza, a melhor homenagem que se pode prestar a um cientista e pensador é colocar em ação o seu legado. Winnicott deixou um legado de notável originalidade, além do pedido pela continuação da revolução a que ele deu início.

Esse legado não se limita à psicanálise, embora tenha se tornado particularmente fértil e conhecido no âmbito dessa disciplina; sua contribuição se estende a todos os campos da saúde e, na verdade, a todas as áreas que estejam direta ou indiretamente relacionadas e empenhadas no desenvolvimento – físico, emocional, intelectual – de crianças, adolescentes e mesmo adultos. Para além da nova e extraordinária perspectiva clínica aberta por ele, seu pensamento alcança questões mais amplas da existência humana.

É exatamente isso que afirma Clare Winnicott, sua viúva, na introdução ao livro Explorações psicanalíticas, publicado após a sua morte. Diz ela que, tendo em vista a sua personalidade, a sua formação e a sua experiência, bem como a “sua premência à descoberta”, era inevitável que Winnicott concentrasse suas pesquisas na área até então relativamente inexplorada da infância mais primitiva e da infância propriamente dita. Segundo Clare, muitos de seus contemporâneos reconhecem que as implicações de suas descobertas vão além da sua área imediata de estudo, e é opinião expressa de alguns que suas descobertas “lançam luz sobre todas as áreas do viver”.

Essa é uma das qualidades do trabalho de Winnicott, que nós, do Instituto Winnicott de São Paulo, temos insistido em divulgar: a amplitude de seu pensamento que, não restrito à psicanálise, atinge diversas áreas da saúde e de práticas clínicas sociais/institucionais, as quais podem ser utilmente orientadas e ajudadas por sua nova e revolucionária perspectiva, tanto na compreensão como no tratamento de casos clínicos, dos mais simples aos mais severos e complexos.

Logo após o falecimento de Winnicott em 25 de janeiro de 1971, nas vésperas de O brincar e a realidade sair à luz, o International Journal of Psycho-Analysis publicou, na seção de Obituários, o tributo que lhe prestou, entre outros, Masud Khan, considerado seu único discípulo psicanalista. Em sua homenagem a Winnicott, Khan escreve que, com a morte de Winnicott, a tradição viva de uma dedicação clínica, sustentada por um único homem ao longo de 50 anos, para o cuidado e a facilitação de crianças e adultos, na direção da saúde psíquica e da maturidade, transformaram-se em um rico legado e em responsabilidade para seus colegas e colaboradores.

Khan lembra a todos que Winnicott começou a sua longa epopeia psicoterapêutica em 1923, como médico assistente no Paddington Green Children’s Hospital, onde ele trabalhou por 40 anos. Foi ali, nesse contexto de intenso envolvimento pediátrico com crianças e mães, que ele moldou a sua específica sensibilidade terapêutica. Ao longo de décadas, continua Khan, o impacto das pesquisas de Winnicott permeou todas as disciplinas afins, desde a pediatria e a psicanálise até a assistência social e a educação. “Ele foi um verdadeiro revolucionário sem um programa evangélico dogmático.”

Chamo a atenção para dois pontos da homenagem de Khan a Winnicott: primeiro, a menção à amplitude e ao alcance da clínica winnicottiana – as várias áreas que em seu trabalho conviveram e se interfertilizaram. Segundo, o fato de que a responsabilidade com o legado de Winnicott a que Khan se refere tem a ver conosco, profissionais dedicados ao trabalho terapêutico na área de saúde psíquica ou, em vocabulário mais preciso, na área dos distúrbios maturacionais.

Winnicott deixou-nos um legado, sim, que é uma riqueza inestimável: uma teoria unitária da natureza humana baseada não na noção de forças psíquicas em conflito dentro de um sistema fechado, concepção emprestada por Freud à física, mas em aspectos fundamentais e universais do ser humano; por exemplo, a ideia de que cada ser humano herda uma tendência inata ao amadurecimento, isto é, à progressiva integração numa personalidade unificada, num eu.

Essa tendência, apesar de inata, depende fundamentalmente, para realizar-se a contento, de um fator imponderável: o modo como o ambiente responde, ou não, às necessidades básicas que o indivíduo apresenta, desde o início e ao longo da vida, nas várias etapas de seu amadurecimento. Ou seja, na contracorrente das principais posições psicanalíticas da sua época que enfatizavam o intrapsíquico, Winnicott assinalou a importância crucial do ambiente, em especial nas fases iniciais, em que a dependência é absoluta.

Na formulação de sua teoria sobre os processos maturacionais, em especial no que se refere aos estágios mais primitivos em que estão sendo lançadas as bases da personalidade, Winnicott é guiado pela questão de saber quais são as necessidades básicas do indivíduo que herda uma tendência ao amadurecimento. Ele observa e pesquisa, em especial, quais são as condições ambientais que favorecem, ou falham em favorecer, a tendência pela qual um bebê, inicialmente imaturo e altamente dependente, chega a tornar-se uma pessoa viável, isto é, capaz de estabelecer relações com a realidade externa (isto é, aceitar a separação eu/não-eu e a existência de um mundo externo não controlável) sem perder o fio que o liga ao mundo subjetivo; capaz de achar algum sentido no fato de estar vivo e de poder, mesmo que só razoavelmente, gerir a própria vida.

A concepção de saúde, entendida como continuidade do amadurecimento devido à resolução satisfatória das diferentes tarefas que se sucedem na linha da vida, permitiu a Winnicott conceber o distúrbio como interrupção desse processo, por falta de facilitação ambiental. A natureza dos distúrbios varia segundo o momento maturacional em que a dificuldade se estabeleceu e isso fornece ao terapeuta ou profissional engajado, seja na cura, seja na prevenção, um mapeamento da etiologia de cada distúrbio. A classificação dos distúrbios é primariamente maturacional e apenas secundariamente sintomatológica.

Formulada nesses termos, a psicopatologia winnicottiana traz uma contribuição fundamental para a clínica psicanalítica, orientando o diagnóstico e dando um norte para o terapeuta, que precisa estar ciente da idade emocional em que o paciente se encontra, seja para dar-se conta da imaturidade ali exposta, seja para acompanhar o paciente nas diferentes. etapas do seu amadurecimento, incluindo fases de grande dependência. Esse horizonte favorece em especial o tratamento dos casos chamados difíceis, que não podiam ser abrangidos pela psicanálise tradicional, mas não apenas.

Como Khan assinalou, essa teoria permite, ainda, repensar procedimentos terapêuticos em vários outros campos da saúde – a pediatria, a psiquiatria infantil, a fonoaudiologia, a enfermagem, a terapia ocupacional –, assim como orientar o que compete à assistência social e à educação em termos de cuidados que favorecem o amadurecimento. Traz também, e muito especialmente, uma preciosa contribuição a todos os que se envolvem em políticas de prevenção.

Ao se dedicar ao estudo dos estágios mais primitivos do amadurecimento, Winnicott tornou-se um mestre nos detalhes, nos pormenores das relações iniciais; ele iluminou, por exemplo, a comunicação silenciosa – ou, como ele diz, a “magia da intimidade” – que se desenvolve entre o bebê e a mãe suficientemente boa, a qual é capaz de empatia, que evolui na direção da identificação cruzada. Essa comunicação primitiva, ainda sem palavras, segundo ele, é a base de todas as futuras formas de comunicação que venham a se desenvolver ao longo da vida.

O que Winnicott apreendeu no exercício paralelo das clínicas pediátrica e psicanalítica com adultos psicóticos foi essencial para a formulação de sua teoria e para o desenvolvimento de todos os aspectos clínicos do que ele chamou de psicanálise modificada, isto é, especialmente adaptada ao tratamento de casos graves, assim como do trabalho clínico sui generis, as chamadas Consultas Terapêuticas.

Com respeito à sua habilidade em comunicar-se com as crianças, J. P. M. Tizard, um pediatra que trabalhou com Winnicott no Paddington Green Children’s Hospital e foi seu discípulo, escreveu no obituário dedicado a Winnicott, quando de sua morte em janeiro de 1971. Tizard conta que conheceu Winnicott em 1949, na época em que se tornou um médico do Paddington Green Children’s Hospital. Com sua “pobre bagagem da geralmente inútil psiquiatria infantil” daqueles anos, Tizard logo percebeu que, qualquer que fosse a dificuldade ou o dano das circunstâncias do passado e do presente de uma criança, a situação certamente seria mudada para melhor caso o Dr. Winnicott estivesse envolvido.

No início, ele atribuíra essa particular habilidade de Winnicott à sua notável inteligência, aos seus poderes intuitivos e ao fato de que ele era “bom com crianças”; contudo, continua Tizard, embora todas essas atribuições fossem corretas, ele deu-se conta que o sucesso devia-se também à sua disciplina profissional e ao seu treino como psicanalista. Além disso, era evidente que Winnicott tinha uma capacidade surpreendente de lidar com crianças. Mas, salienta Tizard, dizer que ele entendia as crianças soava um pouco falso e vagamente condescendente; o fato era mais que as crianças o entendiam, pois ele era uma entre elas.

Mais do que entender as crianças, Winnicott fazia-se entender por elas; ele falava a linguagem delas; ele se comunicava com elas. Creio que se pode afirmar que toda a obra winnicottiana é um exercício de comunicação, já ao princípio, nas palestras para as plateias de diferentes áreas e interesses que o escutavam. No centro de seu pensamento há uma questão central relativa à comunicação e ao seu reverso: não só a capacidade para a comunicação – desde a mais primitiva, orientada naturalmente pela capacidade de identificação com o outro, o bebê – é a habilidade maior da mãe/ambiente que, sendo suficientemente bom, a inaugura em seu bebê, como a impossibilidade da comunicação, para um indivíduo, é a mais geral e pungente das agonias impensáveis.

 

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Elsa Oliveira Dias é psicóloga e psicanalista, mestre em Filosofia e doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. É fundadora, com Z. Loparic, da International Winnicott Association (IWA, 2013) e do Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana (IBPW, 2015) e autora, entre outros, de A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott (2021) e Sobre a confiabilidade e outros estudos (2023).

Uma parceria com o Instituto Winnicott


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