Com o brilho do dólar

Com o brilho do dólar

Saem os franceses e chegam os norte-americanos no processo de descoberta do mundo pela sociedade e cultura brasileiras.

 

Os americanos celebraram o último 4 de julho com um foguetório parecido com o de sempre, menos por um detalhe. Um disparo abriu um buraco no cometa Tempel 1, a 134 milhões de quilômetros da órbita da Terra. Deslocando-se a 37 mil quilômetros horários, uma sonda atingiu o cometa às 2h52 daquela segunda-feira, hora de Brasília. A explosão causada pelo impacto foi gravada e transmitida para todo o mundo. Foi brilhante como um dólar recém-polido. Quem mais teria dinheiro e competência para essa façanha? No ano passado, sete dos doze ganhadores do Prêmio Nobel trabalhavam em universidades americanas. Resultados semelhantes têm sido freqüentes há muitos anos. Os Estados Unidos não são apenas a maior potência militar – única superpotência desde o fim da União Soviética, são também a maior economia, com cerca de um terço do produto bruto mundial, e uma extraordinária usina de produção científica, tecnológica e cultural.

Goste-se ou não de seu governo, de seu crescente unilateralismo e da arrogância de sua ação imperial, não há como desconhecer ou negar aqueles dados. São essenciais para qualquer conversa razoável sobre a influência cultural americana, ou, como preferem alguns, sobre o colonialismo cultural dos Estados Unidos.

Em que consiste esse colonialismo, se é que se trata disso? Não se trata da imposição de hábitos, valores e instituições de uma potência colonial em territórios dominados. Resíduos culturais da herança européia permaneceram em áreas da África, da Ásia e do Caribe quando as colônias alcançaram a autonomia política depois da Segunda Guerra. Relações semicoloniais permaneceram também na vida econômica. As preferências comerciais concedidas pela União Européia aos países do grupo ACP (Ásia, Caribe e Pacífico) evidenciam essa relação e afetam a composição de forças na Organização Mundial do Comércio.

A influência cultural dos Estados Unidos tem raízes de outro tipo. Seu cinema já era o mais difundido, internacionalmente, na época da Segunda Guerra. Antes disso, o jazz e a música européia contaminaram-se mutuamente e esse fato é bem conhecido. Além do mais, as grandes universidades americanas têm uma história longa e no começo do século 20 sua produção já era reputada nos principais centros de cultura. Os americanos já entraram no século passado como importantes produtores de tecnologia, de ciência, de filosofia, de literatura e de artes. A originalidade e a riqueza de sua produção, no entanto, eram menos visíveis do que hoje e isso em parte deve ser explicável pela tendência ao isolacionismo, que se impôs novamente depois da Primeira Guerra.

O cenário e a distribuição dos papéis mudaram imensamente com a Segunda Guerra e, em seguida, com a Guerra Fria. Para começar, nenhuma outra potência capitalista emergiu tão forte, em todos os sentidos, da luta contra o nazismo e o fascismo. A diferença de poderio econômico logo se impôs. As instituições de Bretton Woods – o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial – foram moldadas principalmente segundo o desenho proposto pelos americanos. Nenhuma outra moeda, a não ser o dólar, poderia ter cumprido o papel de reerguer a economia mundial. O dólar tornou-se a referência mais importante do sistema financeiro.

Os Estados Unidos financiaram a reconstrução da Europa e do Japão. Com essa operação, com a presença militar nas áreas de maior importância estratégica e também com o investimento direto, a moeda americana espalhou-se pelo globo. Foi muito bem-aceita, enquanto a liquidez mundial, até o começo dos anos 1960, foi escassa. Tornou-se, depois, um fator de inflação denunciado pelo presidente francês Charles de Gaulle e por seu economista predileto, Jacques Rueff.

Por esses canais, a economia americana conquistou, em pouco tempo, um poder internacional sem precedente na história. Aceito em todo o mundo, o dólar foi emitido livremente, por muito tempo, para financiar o balanço de pagamentos americano, para sustentar tropas no exterior e também para permitir a implantação e a compra de indústrias em vários países. Foi uma conquista geralmente pacífica, embora respaldada, em boa parte, pelas manobras e alianças da Guerra Fria. O filme francês Um homem, uma mulher, dirigido por Claude Lelouch e lançado em 1966, foi uma propaganda romântica e envolvente do Ford fabricado pela filial francesa. Era um novo modo de ocupação da Europa, onde começavam a se formar bolsões de resistência à hegemonia americana. Por inspiração do general De Gaulle, passou-se a usar as palavras “entrant” e “sortant” em vez de “input” e “output”, no Brasil traduzidas, mas não por nacionalismo, como “insumo” e “produto”.

Talvez De Gaulle, com sua respeitabilidade política, pudesse cometer essas bobagenzinhas sem afundar no ridículo. No Brasil, as manifestações culturais de antiamericanismo raramente foram além da louvação da broa de milho e das campanhas para trocar Papai Noel pelo Saci Pererê ou por outra figura igualmente, com perdão do mau jeito, made in Brazil.

A ocupação cultural e a econômica percorreram juntas boa parte do caminho. Hoje a empresa McDonald’s opera ou franqueia mais de 30 mil restaurantes em 119 países. Atende a cerca de 50 milhões de consumidores por dia. Assim como o fast-food, a maior parte dos elementos americanos culturais disseminados pelo mundo converteu-se em paisagem. Quem chama atenção por usar jeans? Quem é apontado como imitador do estrangeiro por fazer compras em supermercado, freqüentar shopping center ou utilizar a máquina que vende café e refrigerante?

O caso do McDonald’s ainda envolveu uma conseqüência curiosa e muito especial. Como seus produtos são padronizados em todo o mundo, o Big Mac, um dos sanduíches mais conhecidos, acabou virando unidade de cálculo cambial. Há muitos anos a revista britânica The Economist passou a publicar, de tempos em tempos, o Índice Big Mac de câmbio, uma forma de estimar as variações das diversas moedas em determinados períodos. Convertido em padrão de valor, um sanduíche tornou-se talvez o maior símbolo da homogeneidade produzida pela hegemonia americana.

Nada menos surpreendente, portanto, que a conversão do inglês em língua franca. Pode-se percorrer o mundo falando a língua dos filmes americanos, que é também a língua dominante no comércio, na diplomacia e na maior parte das transações culturais.

No Brasil, a ascensão do inglês como segunda língua ocorreu a partir dos anos 1960 e 1970, ao mesmo tempo em que o francês perdia prestígio. Vários fatores econômicos, políticos e culturais contribuíram para essa mudança, mas teve peso especial a reforma dos cursos secundário e médio. Até a Reforma, inglês e francês constavam dos currículos dos, então, ginásio e colégio. O curso colegial ainda incluía um ano de espanhol. Quem escolhia o curso clássico totalizava sete anos de latim -– quatro no ginásio e três no colégio. Para enfrentar o vestibular, o estudante precisava mostrar uma capacidade razoável de leitura e compreensão em língua estrangeira.

Como o pulo do sapo, esse conhecimento era exigido não por belezura, mas por precisão. Na maior parte dos cursos, a bibliografia em português era escassa e a maior oferta de textos era em francês, inglês e espanhol. Com a reforma do ensino, o francês, o latim e o espanhol foram abolidos. Sobrou no currículo das escolas públicas um precário ensino de inglês. O conhecimento de língua estrangeira virou privilégio de quem podia pagar ginásio privado ou curso de idioma em escola especializada. Com isso, o estudo de línguas passou a depender mais da motivação profissional do que do interesse cultural.

Para a universidade, o maior contato com a cultura americana foi, em grande parte, conseqüência do próprio desenvolvimento da atividade acadêmica. A Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), que inaugurou no Brasil os padrões modernos de ensino e pesquisa, foi moldada originalmente por professores europeus. Influências também européias marcaram durante muito tempo a história das faculdades de Direito e de Medicina. Nos anos 1960 e 1970, algumas áreas da universidade ainda pesquisavam e refletiam à francesa, mantendo-se fiéis, em todo caso, à matriz intelectual européia.

 Outras escolas, dentro e fora da USP, já haviam reconhecido a importância da produção dos Estados Unidos e isso afetou tanto o conteúdo quanto a forma de seus cursos. A Fundação Getúlio Vargas é um dos exemplos mais notáveis. Os cursos americanos de pós-graduação passaram a atrair contingentes cada vez maiores de estudantes, antes mandados preferencialmente para as faculdades européias.

Contemplada a uma distância de 30 ou 40 anos, essa história parece grotesca. No entanto, esse grotesco é verdadeiro. Parte dos intelectuais continuou fascinada pela matriz européia mesmo quando os europeus debatiam idéias americanas. Em 1971-72, filósofos políticos de todo o mundo ocidental tiveram de forçar os miolos com a leitura do livro recém-lançado por John Rawls, Uma teoria da justiça. Durante os 25 anos seguintes, Rawls, professor de Harvard, continuou a ser uma das figuras centrais da filosofia política, revendo continuamente suas teorias e polemizando com professores das universidades mais importantes. Nos anos 1970, filósofos e cientistas sociais brasileiros sabiam das últimas idéias lançadas na Europa. Mas poucos pareciam haver notado a obra rawlsiana, que só ganharia espaço na discussão acadêmica, no Brasil, muitos anos depois.

Não se pode dizer que a universidade brasileira tenha trocado a matriz européia pela americana, deixando uma sujeição por outra ou um velho colonialismo por um novo. Mais que injustiça, essa afirmação seria bobagem. A academia brasileira tornou-se mais aberta ao mundo, menos provinciana e mais empenhada em produzir segundo os melhores padrões mundiais. O país ganhou com isso.

A macaquice em relação a certos aspectos da cultura americana é outro assunto. Aí, sim, tem sentido falar sobre a troca de um tipo de hegemonia por outro. Talvez seja inevitável que o mercado brasileiro de capitais funcione colado aos mercados mais importantes. Idiotice, mesmo, é falar nos players e não nos operadores, agentes ou atores do mercado. Mais que ridículo é dizer que a conferência foi “atendida” por cem pessoas ou que fulano decidiu “endereçar” o problema. Barbaridades como essas têm sido ditas por pessoas educadas. Mas como protestar, quando ilustres professores de Letras tomam a iniciativa de afirmar que não há erro de linguagem e que vale tudo no uso do português? Disso ninguém pode culpar os americanos. Eles também não inventaram a mistura de tu e você, praticada quase como obrigação pelos comunicadores brasileiros.
A conversão do solecismo em valor estético é produto inequivocamente nacional. Viva nóis.

Rolf Kuntz
jornalista do diário O Estado de S.Paulo e professor de Filosofia Política na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP)

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