Cinquenta tons de Cinza – de novo

Cinquenta tons de Cinza – de novo

Ontem fiz uma brincadeirinha (realmente esta era a intenção) aqui no meu blog (cujo nome é Filosofia Cinza, sem tons, permitam-me ironizar só mais esta vez). O tal post foi intitulado “Com amor, recadinho fofo para as leitoras de 50 Tons de Cinza” (vide abaixo). Claro que, pelo tom do próprio título, se tratava de um texto pouco sério, no sentido de ser ligeiro, como se diz de música ligeira. Assim, coisinha rápida, pra brincar. Só que alguma coisa aconteceu com a exposição da minha brincadeira. Fiquei espantada com certos aspectos que relato aqui.

Pra começar, com o fato de que, quando escrevi sobre aborto e outros temas fortemente feministas, nunca houve tanta gente visitando o meu modesto blog. Quer dizer, isso reforçou em mim aquela indagação que muitos estão se fazendo: o que há neste livro que mexe tanto com as pessoas? Penso que esta seja a pergunta mais importante que possamos nos fazer diante do fato deste livro. Penso que dificilmente alguém terá coragem de enveredar por uma análise literária do livro, pois que não se trata de um livro em que a questão da literatura esteja em jogo. Mas isso não é um problema. O livro não é tão ruim quanto uns, não é tão bom quanto outros. Há, a propósito, muito livro ruim escrito em nome da literatura. Mas não vejo que este livro esteja preocupado em ser literatura, em alcançar um lugar em algum cânone literário. Há muito livro bom que também não está preocupado com isso. Mas é fato que não há em 50 Tons nenhum trabalho de linguagem, senão aquele da velha descrição cansativa (com alguns momentos mais felizes, outros mais infelizes) que não cria um estilo. Mas isso não é mesmo a intenção do livro. Nem o efeito que ele buscaria. Não há também um trabalho – um esforço – em torno da ação (excessivamente repetitiva) que poderia ser mais forte considerando seu conteúdo. Qualquer assunto, podemos concordar, pode dar um bom livro. Além disso, ninguém que seja éticamente razoável, ou seja, que acredite na validade da democracia, defenderá uma censura ao conteúdo, ao tema, ao assunto de um livro qualquer. Isso vale obviamente para este 50 Tons. Por outro lado, é claro, elevar o livro à questão literária, ou seja, querer debater se ele pode ou não ser literatura, também pode nos dizer algo. Aguardemos os argumentos. Pode bem ser que, em algum momento, alguém levante a tese de que este tipo de livro acaba com a literatura, mas aí é o mesmo que dizer que a televisão acabou com o cinema, ou coisa do tipo. Enfim, o problema aqui não é este.

Eu li o livro, os 50 tons de cinza, pois precisei entendê-lo em dois momentos, um debate de TV e a curiosidade feminista. Achei chato e bobo porque gosto de outras coisas, tenho outros interesses. Claro que meu feminismo e o meu entendimento do que sejam filosofia e literatura não me ajuda a curtir livros desse tipo. E é claro que as pessoas que tem outros interesses e gostos diferentes dos meus, podem achar o que eu leio muito chato e bobo, ou pernóstico e complicado. Podemos passar séculos debatendo o gosto, afinal ele é formado cultural e educacionalmente. Mas isso é outra história. Sobre a questão do gosto há muita coisa que pensar e ler. Sugiro, para encurtar a questão, algo mais rápido, um filme que é um verdadeiro ensaio video-teórico e, ao mesmo tempo, uma delícia que desce redondo: O GOSTO DOS OUTROS  da Agnés Jaoui.

Outra coisa importante, eu não recebia tantos comentários em um blog desde o comentário do tema da pichação no blog PINKPUNK da minha época de Saia Justa. Naquela época aconteceu o mesmo que agora. Eu defendi a pichação e fui pichada. Ok. Aqui eu critiquei abstratamente o livro e fui criticada asbtratamente. A diferença entre crítica abstrata e concreta é que a primeira é “qualquer nota” e a segunda é o que eu estou tentando fazer aqui ao escrever estas impressões.

Sobre a quantidade – e a qualidade – dos comentários ao meu post de ontem, gostaria de dizer que foi um momento altíssimo, e agradeço a todos que comentaram fazendo daquele espaço um verdadeiro forum de percepções. Foi um presente para alguém que, como eu, ama a pesquisa. De repente, sem esperar, recebo um mundo de atos de fala dos mais variados, desde os de apoio, os de indignação, os que aproveitam para violentar verbalmente a mim e a outros. Enfim, é maravilhoso ver a democracia se tecendo na malha fina da internet. E com tanto conteúdo positivo e negativo, comentários mais ou menos lúcidos, mas de qualquer maneira expressivos e falantes. Havia muita coisa mal colocada, e muita coisa bem colocada. Eu realmente gosto desse circo pegando fogo, é um momento importante na desmistificação da opinião geral. É genial ver as pessoas corajosamente se expressando, seja para acertar, seja para errar. Penso que, em momentos como estes, há algo de mais importante acontecendo em um país que ainda engatinha na democracia. Todos juntos, discordando, mesmo que sem muito orientação, sem muito respeito, estamos construindo a democracia. Por isso, não me incomodei tanto com a agressividade, pois percebi que ela apareceu como um efeito do desejo de elaboração das pessoas em relação a algo que as comove. A minha também.

Por isso comentei que prefiro a “guerra de ideias” à paz. Eu realmente acho que temos que incrementar nossa capacidade de debater. Que o mundo da opinião tem que ser aberto para que possa surgir a reflexão que é bem melhor do que a mera opinião. Eu realmente confio que nos respeitaremos como pessoas se formos capazes de discordar com reconhecimento do lugar do outro, mas se passarmos por um pouco de falta de respeito e pudermos superar isso, tudo bem também. Não estou, entendam bem, defendendo a violência verbal (ou qualquer outra), estou apenas dizendo que isso tudo nos pode ensinar algo. A mim e a todo mundo. E não penso que tenhamos que evitar dizer o que pensamos sobre as coisas. Que seja chato, ou isso ou aquilo. Para muitas pessoas eu fui chata e tudo bem, fui mesmo para elas. Algumas se expressaram dizendo coisas muito mais feias. Outras disseram coisas muito boas. Que bom também. Melhor falar e arcar com as consequências do que dizemos do que fingir que não temos nada a ver com isso. Depois podemos ver se há razão no que dizemos, se podemos ser amigos ou se devemos ser inimigos.

Percebi muitas vezes que as pessoas que defendem o livro que eu critiquei toscamente, o fazem toscamente em relação a mim. Usam aquilo que em filosofia chamamos argumento “ad hominem”. Se eu emito uma mensagem, não é a mensagem que é questionada, mas a minha pessoa. É super comum que isso aconteça, afinal a mensagem tem um autor e este sofre sob seus próprios preconceitos e pressupostos. Mas há limites que precisam ser respeitados. Se eu digo que quem leu o livro é imbecil, burro ou algo assim, e alguém diz que burra sou eu, não saimos do mesmo lugar, somos todos burros e venceu a violência. Em resumo: aqueles que comentam que o meu comentário tosco leva a críticas toscas relativas ao meu próprio comentário tosco, esquecem que poderiam aplicar o mesmo argumento para me defender. Poderiam dizer que um livro como este faz surgir um comentário tosco como o meu. Percebem o enredamento em que estamos com este tipo de argumento?

Mas até agora não comentei o que realmente me fez escrever o post em questão. Eu estou indignada com o rebaixamento do livro à mercadoria. E este tem sido um exemplo dos mais radicais. Você entra nas livrarias e encontra pilhas desse título e não encontra um monte de outras coisas. Quer dizer, o negócio é bom porque vende na era do mercado elevado a estilo de vida. Quando vi uma moça grávida comprando o livro e uma mãe de família lendo no avião, fiquei fantasiando que elas não conhecem outras coisas e que não escolheram este livro e sim, foram escolhidas pela Indústria Cultural do livro. Uma das táticas da Indústria Cultural é fazer a pessoa crer que ela escolheu aquilo que lhe foi imposto…  E as pessoas assumem imposições porque não sabem o que ler (claro que há quem o leu porque sabe o que ler).

Bom, alguém dirá, “mas livro sempre foi mercadoria”. E é verdade, mas como dizia Walter Benajmin, o livro era uma mercadoria que valia muito mais do que o seu preço. Uma mercadoria que negava a forma mercadoria em função do espaço de experiência que ofertava. Este livro, a meu ver, manifesta a experiência empobrecida do nosso tempo e ajuda a promovê-la mais ainda. E isso não é moralismo estético, meus caros, pois penso como Benjamin neste caso em que “livros e putas podem se levar para a cama”.

Que a indústria da cultura se valha do meio livro para evitar o pensamento crítico (a união de reflexão e sensibilidade), a isso já estamos acostumados. Mas eu tenho o dever (e o gozo, confesso) de lutar contra isso, contra o elogio da ignorância. E, neste caso, tenho que lutar contra esse tipo de livro, filme ou coisa parecida, que perpetue este elogio do pior só porque se vende muito do pior. O pior é democrático sempre, vide a o estado da educação e da saúde no Brasil… Não quero dizer com isso que eu desaprovo sua leitura. Não desaprovo, aliás, entendi que para muitas pessoas este livro foi legal. Eu respeito qualquer leitura, eu mesmo leio um monte de livros ruins. Só lastimo. Lastimo que seja o único livro que muita gente tenha lido. Lastimo também que ele seja, na verdade, um produto que resulta de marketing muito bem feito com coisa tão ruim. Que as pessoas sejam pegas pelo seu desejo de fazer parte do todo, da audiência (falei disso no meu Olho de Vidro),  do “todo mundo tá usando”. Gostaria de ver o dia em que o marketing dos livros se voltasse para livros que mudassem a sensibilidade das massas para melhor. Em vez de massas fascistas, massas revolucionárias. Em vez de gente dessubjetivada pelo mais do mesmo, gente livre dizendo o que pensa e fazendo o que quer (de verdade…).

Além disso, este livro é conservador. Mas, como eu disse antes, isso não é o maior problema, afinal há gosto pra tudo e, por mais que não possamos deixar de debater o gosto, não podemos muita coisa em relação ao gosto de cada um. Eu penso que livros deveriam servir para entendermos algo da vida. Detesto que sejam rebaixados a um coisa que se põe na lista dos mais vendidos e que administra o desejo do outro que está em mim. O desejo de ser audiência, no caso, de ser “leitor”, que mencionei acima. Talvez pra mim a forma livro seja sagrada demais pra cair nisso. Sagrado porque vejo nele o melhor que fizemos enquanto ser genérico que somos, o mais bonito, até aqui. E penso que literatura serviria para o nosso prazer e a nossa emancipação radicais, para a nossa exuberância criativa e não para a obediência servil ao entretenimento que nos quer sufocar. Daí que estas obras com algo de literário (me refiro também aos livros estilo roteiro pra cinema que são também muito chatinhos) me despertem tanta acidez. Arte é mais.

É verdade também que este livro humilha a imagem das mulheres. Ele também humilha a imagem dos homens e contra esse tipo de conteúdo sempre podemos nos insurgir. A crítica à estética é um direito e um dever ético de quem critica.

Neste caso, por fim, vejo que joguei uma pedra na indústria, pichei o livro… pichei todos os que não pensam assim e gostam dele. Vou continuar pichando quando achar que devo. Espero que , com isso, todos continuem falando do que acham que devem falar. Calar é pra tempos de ditadura. Por sorte este não é, legamente falando, o nosso caso. Não sou do partido do cordialismo, nem quero agradar ninguém. Não escrevo livros, nem estes posts de blog para isso. Discordar é a nossa saída quando ela é sincera. Concordar também só vale a pena se for assim.

Por fim, eu também queria dizer que há livros maravilhosos sendo escritos em português, também por mulheres. Citei 5. 3 de autoras jovens no cenário, 2 de autoras consagradas e que todos deveriam conhecer mais. Espero que quem tenha lido 50 tons como eu, siga lendo coisas melhores.

Li resenhas interessantíssimas na internet e considero que esta tem um tom bem humorado e inteligente.

http://www.skoob.com.br/estante/resenhas/3285

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