Cid Campos e a poemúsica do disco Entredados

Cid Campos e a poemúsica do disco Entredados

 

 

Parceiros há quase três décadas, Cid e Augusto de Campos lançam novo livro-CD relembrando os 70 anos da poesia concreta

 

O livro-CD Entredados é a mais recente parceria do poeta, tradutor e ensaísta Augusto de Campos com Cid Campos, músico, compositor e produtor musical.

Cid já fez trilhas sonoras para filmes, programas de TV, balés, instalações, espetáculos multimídia e tornou-se referência incontornável no trabalho sonoro com poesia desde a produção musical do  álbum Poesia é Risco, de 1995, primeiro disco lançado com Augusto.

Entredados traz 10 faixas nas quais Cid cria uma paisagem de sons e nos transporta pra dentro dos poemas. O disco abre com Um lance de dados, poema de Mallarmé, registro único de Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos juntos na mesma leitura. Também encontramos Maiakóvski, Lewis Carroll, James Joyce, Ezra Pound e Gregório de Matos na voz de Augusto, que também escreve em homenagem a John Cage.

Além de ter musicalizado autores complexos como Blake, Rimbaud e Cummings, Cid Campos já compôs canções para outros poemas intrincados, entre eles, O verme e a estrela,  Pedro Kilkerry, O mocho e a gatinha e Canção da falsa tartaruga, ambos de Lewis Carroll, Alface, de Edward Lear e Sem saída, de A. de Campos. Todas essas músicas citadas foram gravadas por Adriana Calcanhotto.

Com 64 anos e inseparável da poesia, Cid é um compositor raro na cultura brasileira. No Lago do Olho, Fala da Palavra, Crianças Crionças, Nem, O Inferno de Wall Street e Profetas em Movimento, Emily, Poesia és Riesgo, cada disco seu tem uma estranha força que aguça nossa percepção.

Por videochamada, ele concedeu esta entrevista do MC2 Studio, em São Paulo, onde continua sua experimentação melódica.

 

Você e Augusto lançaram agora o livro-CD Entredados. Que relação há entre o Poesia é Risco (1995) e este álbum de 2022?

Cid Campos – O Poesia é Risco foi um processo de descobertas. Eu tinha acabado de montar o estúdio e estávamos naquela animação de ter um espaço com condições boas, podendo testar todo tipo de efeitos. Por conta disso, aquelas músicas foram saindo. Antes, mesmo nos anos 80, eu tinha feito algumas experiências. Por exemplo, Cidade/city/cité foi feita pra uma instalação no SESC da Av. Paulista. Agora, nesse trabalho, tudo foi muito fluente. No Entredados há faixas de várias épocas. Nem tudo é recente. São coisas que estavam meio flutuando e a gente acabou reunindo. Mantém as oralizações do Augusto em todas as faixas. Sendo que, na primeira, ainda com Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Por exemplo, para o poema Um lance de dados, há uma música que fiz recentemente. Tinha a gravação das vozes de Haroldo, Augusto e Décio, e fiz a música pra dar um “punch” na leitura. É uma responsa aquilo ali! Ficou interessante o resultado e dialoga muito com o tipo de musicalização e com as composições do Poesia é risco.

 

O tratamento sonoro que você criou potencializa as palavras. Em Um lance de dados, quando Augusto lê “empunhar o leme”, “sem nau” etc, soa o barulho de madeira numa embarcação, levando quem ouve a se sentir navegando. Que instrumentos você usou?

Tem muita coisa. Esse disco, eu gravei tudo sozinho. A única participação que tem é do Roberto Sion com um saxofone na última faixa, Da antologia clássica chinesa. Inclusive, por conta da participação dele, dividi a parceria da criação musical. No Um lance de dados, tem uma guitarra slide o tempo todo ali, que é uma coisa do blues. E, ao mesmo tempo, tem guitarra midi, baixo, cordas, samples de tudo quanto é tipo. Muita coisa rítmica de percussão. Tímpanos! Tem uma hora que entram os tímpanos (risos)! Eu vou compondo. Hoje o leque de material é muito grande.

 

Há até sons de dados sendo jogados.

Sim. Isso eu gravei numa mesa. Pra cada música, vou pondo uma coisa aqui, e passa um tempo, é um processo de trabalho. Agora, tem que ter muito cuidado pra não invadir demais as leituras. Há uns breques no meio, umas pausas. Eu procuro sempre não mexer nas leituras para as coisas encaixarem de algum jeito.

 

Quando ouvimos o disco, lendo o livro, ao passar pra outra página, escutamos a mudança de trilha, às vezes um silêncio.

É isso mesmo. As primeiras, Um lance de dados, Mesósticages, A extraordinária aventura de Vladímir Maiakóvski, todas têm uma sequência de arranjos. São músicas que a pessoa precisa gostar de poesia, gostar desse tipo de audição pra se envolver, fechar o olho e curtir. Ana Lívia, fragmento do Finnegans Wake, de Joyce, é uma coisa muito leve. É um piano. Quando o Augusto gravou isso, ele fez uma voz profunda! Eu fui partindo pro piano. Não toco piano, mas eu monto (risos). Vou tateando. Também tem a guitarra midi que você põe um timbre de piano… Em Ana Lívia, tem violão, cordas, uns efeitos, mas já é uma música mais suave.

 

Então o disco demorou muitos anos pra ficar pronto.

Sim. E essa coisa da pandemia, que a gente se isolou um pouco, serviu pra ficar no estúdio, rever coisas, arrumar o que não estavam finalizadas. Com isso, a gente lançou Entredados e, mais na frente, vou lançar outro disco solo que também fiz nesse período. E tudo gravando sozinho por conta do isolamento. Eu sempre gostei de gravar com banda, ensaiar, fazer show. É muito diferente. Um músico entra com ideias, com participação, criatividade. Mas sempre quis fazer algo assim, sozinho. Entredados e esse outro projeto que vai vir foram assim. Minha parceria com você, Povo País Caos, também. Fiz tudo aqui no estúdio.

 

Um lance de dados é a única gravação com Augusto, Décio e Haroldo na mesma faixa?

É a única que tem os três na mesma faixa. A gente já fez muita coisa. Às vezes tem os três no mesmo disco, como no meu álbum No lago do olho (2001). Há música com Augusto, uma com Décio, outra com Haroldo. Separados. Eles lendo juntos é uma das raras gravações… A gravação foi feita num programa da Rádio Cultura em 1997. Eles pegaram o livro (Mallarmé) e iam passando. O legal é que ninguém errou (risos)! Saiu certinho! Coisa incrível! Peguei a gravação, editei, tinha muito barulho. Então tive todo um trabalho de limpar, de equalizar. Às vezes tinham palavras mais distantes… A música eu comecei a fazer há um ou dois anos. Augusto chegou pra mim e falou: “Você não quer fazer uma música?”.

Qual é sua faixa predileta do Entredados?

Gosto demais de Um lance de dados. Gosto de Ana Lívia, que tem essa suavidade do piano. É uma interpretação que eu acho muito especial do Augusto. Ele botou ali uma alma, um timbre, um peso, um ar! Gosto muito. A gente ficou contente com esse trabalho, e por ter saído o livro. Começamos a pensar na dificuldade dos textos, são textos complexos. Então é muito interessante a pessoa poder ouvir e ler. A gente até pesquisou alguns formatos de audiobook, mas, pô, nada como um livro que você abre. Augusto queria muito fazer o CD. E pensando que muita gente ainda tem CD… Hoje, se você chega com um CD, o cara não sabe o que fazer mais (risos). Antes, acho que o pessoal ainda tinha no carro.

 

É engraçado ouvir a dor do Augusto falando que o CD está desaparecendo (risos). Sinto o mesmo. CD tem projeto gráfico, ficha técnica, faz diferença pra mim.

Faz. A gente sente. Eu gosto de olhar quem tocou os instrumentos, o que tem naquela faixa, o arranjo. Isso é uma coisa que a gente traz do LP, que pode apreciar olhando e curtindo a capa. Hoje mudou muito.

 

Fale sobre a edição do livro.

Acho que esse formato do livro fica um conjunto que reúne o trabalho. Foi muito bacana o Filipe Moreau, da editora Laranja Original, ter acolhido o projeto. Uma edição super bem feita, caprichada! Foi o melhor que poderia ter acontecido. As imagens dos dados feitas pelo Fernandinho Laszlo e pelo Walter Silveira são de um trabalho inspirado nos dados do Mallarmé. É bonito à beça. O Augusto já tinha desenvolvido ideias de capa, do projeto gráfico, mas foi muito legal a participação do André Vallias. Ele tem soluções muito boas. Achei muito interessante essa data, foi o Augusto que fez: ele colocou “2022” com os dados. Foi uma sacada.

 

Vocês vão fazer show do Entredados?

Hoje em dia, o Augusto não faz mais apresentações. Ele considera que agora está de bom tamanho a participação dele (risos). Pra ele, fica difícil subir em palco… É escuro… Então é um disco que vai ficar nessa audição: uma pessoa ouve, um escreve aqui, fala alguma coisa lá. Eu poderia pegar uma música, adaptar. Mas, e a leitura? Não tem nada cantado. Eu não participo de nenhuma faixa com voz. É tudo feito pra voz do Augusto.

 

É surpreendente o fato do Augusto ter 91 anos com uma voz muito limpa! Com a idade, é normal a voz se desgastar. Mas a dele não. É sem ruído, tem claridade e força.

É incrível isso. Às vezes, ele até anda com um pouco mais de dificuldade. A idade pesa, né. Não é fácil essa idade tão avançada… Na hora em que ele senta pra falar, é uma lucidez incrível! Lembra e cita coisas, nomes e trechos. É muito legal. Quem sabe a gente faz mais alguma coisa juntos. Ele tem os projetos dele. Não para, sempre trabalhando. E tem as correspondências em outras línguas: gente da Itália, da Espanha, não sei da onde. Ele fica muito ocupado mesmo. A gente sempre se fala. Ele tem tido muito convite pra exposição, participações. Eu dou um apoio pra organizar e não sobrecarregá-lo com aspectos de produção. A gente vai tocando o barco dessa forma.

 

E seu novo álbum que será lançado no fim de 2022?

No disco, entre outros, vai ter Tsvietáieva, Ontem é História da Emily Dickinson, Arnaut Daniel, Maiakóvski, Joyce, são vários poemas que fui musicando das traduções do Augusto. Coisas novas. Dessa vez, ele não participa. Pelo menos até agora. Está no forno ainda. Eu paro um tempo e depois pego pra reouvir, pra confirmar se nada me assombra (risos).

 

Thiago E publicou o livro de poemas Os gatos quando os dias passam (7Letras). Contato: @thiagoe.the

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