Cena Contemporânea

Cena Contemporânea

O colunista Welington Andrade (Foto: Divulgação Cásper Líbero)

A partir de hoje, o site da CULT ganha uma nova coluna. Em “Cena Contemporânea”, Welington Andrade escreve sobre as peças da temporada e eventos teatrais. Bacharel em Artes Cênicas pela UNIRIO e em Letras pela USP, onde também desenvolveu suas pesquisas de mestrado e de doutorado, Andrade é professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero e um dos autores da História do Teatro Brasileiro (Editora Perspectiva/Edições SESC-SP).

Em O ser absoluto na expressão de uma atriz primordial, seu texto de estreia, o colunista fala sobre a peça Carta ao pai, dirigida e interpretada por Denise Stoklos.

O ser absoluto na expressão de uma atriz primordial

Quando Denise Stoklos se encontra com Franz Kafka, ao espectador somente resta uma saída: lutar contra as tiranias, sejam elas externas ou auto-impostas

Welington Andrade

“O pai atinge uma grandeza cultural nos mitos sobre as origens; sua simbologia se confunde com a do céu e trai o sentimento de uma ausência, de uma falta, de uma perda, de um vazio, que somente o autor dos dias poderia preencher.” (Dicionário de símbolos. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant).

Carta ao pai, o mais recente trabalho da atriz e diretora Denise Stoklos, mergulha fundo na famosa correspondência de cinqüenta páginas que o escritor tcheco Franz Kafka escreveu, em 1919, a seu pai, Hermann Kafka, mas que jamais foi entregue ao destinatário. Transitando entre os registros biográfico e literário, cuja fusão resulta em um exercício igualmente híbrido de testemunho existencial e documento histórico, o texto constitui um espécime fascinante de escritura no qual um dos maiores escritores do século XX – autor de obras-primas da prosa universal como A metamorfose, O processo e O castelo – empreende um ajuste de contas memorável com seu pai. “Dificilmente algum filho pôde escrever ao pai carta mais pungente do que esta”, afirma a breve nota publicada na contracapa de uma das edições brasileiras da obra, traduzida por Modesto Carone. Pungência essa que exerce forte atração sobre o leitor, convidado a partilhar paulatinamente cada passo da via sacra introspectiva trilhada pelo autor.

Durante os cerca de 60 minutos que dura o espetáculo, a singular criadora do teatro essencial lança o espectador, sem rede de proteção alguma, para dentro de um turbilhão de imagens tormentosas que misturam humilhação, ressentimento e dor. Fosse mais longa a hora lancinante conduzida pela intérprete, sucumbiríamos diante do adensamento de tanta tirania. Mais curta, não teríamos usufruído a experiência do sublime, nascida do ato de vingança que deseja ardentemente converter-se em esforço de reconciliação.

O vertiginoso repertório corporal-sinestésico que Denise explora minudentemente e a voragem com que a intérprete se lança à ação de estar em cena não somente retiram o público do estado convencional de observador passivo do fenômeno teatral como também reafirmam uma verdade há muito conhecida: a atriz paranaense é uma das criadoras mais sensíveis e inteligentes que já pisaram nos palcos brasileiros.

A potente voz de Denise é uma ferramenta cujo mecanismo estético-expressivo as novas gerações de atores deveriam se esforçar em compreender. Emitida organicamente a partir das entranhas do pulmão, nem um pouco calculada ou vaidosa de si mesma, essa voz imprime às palavras que pronuncia um efeito atroador, selvagem, comovente – como em uma boa canção de Bessie Smith, Nina Simone e Elis Regina. E o que dizer, então, do corpo da atriz? Que se contorce, esgarça-se e vibra vivamente diante de nós, tomado por tamanha tensão criativa que transforma todo e qualquer estímulo em pura energia teatral.

A atriz e diretora Denise Stoklos (Foto: Thais Stoklos)

Em Carta ao pai, Denise Stoklos compreendeu perfeitamente as principais linhas de força da obra kafkiana – esse autor singular cuja presença na ficção moderna é tão relevante quanto à do irlandês James Joyce e à do francês Marcel Proust –, conferindo-lhes uma plasticidade vocal e corporal única. Os efeitos de humor que nascem de uma atmosfera de estranhamento (controlados pela intermitência, desregulados em sua intensidade), os elementos expressionistas (manipulados por uma pressão emocional e imaginativa que embaralha as categorias de tempo e de espaço), os recursos de distanciamento (que alertam para a armadilha que é enveredar pelo registro puramente dramático) e a escolha do corpo humano como palco de um confronto vital (cujos resultados são humilhação e fracasso) estão todos lá.

Entretanto, essa Carta ao pai vai muito além do mero tributo literário a um escritor canônico. De fato, o texto kafkiano está presente de ponta a ponta no espetáculo, servindo-lhe de fio de Ariadne, mas de tempos em tempos a intérprete o toma como mero pretexto, disposto a saltar da esfera da referência imediata e se precipitar em outros contextos. Seja nas intervenções diretas dirigidas à platéia, seja na simulação do consultório psicanalítico, discretamente localizado no fundo do palco, Denise explora toda a riqueza do símbolo do pai e de seu potencial ambivalente: o pater familias é a um só tempo penhor de transcendência e de aniquilação. O pai figura menos como “genitor igual à mãe” do que como “fonte de instituição”, “aquele que dá as leis”. (Tomemos aqui as bem-vindas definições de Paul Ricoeur no tratado De l’interprétation). Representante da ordem senhorial – que se confunde em escala cósmica com a imagem do céu –, o pai é simultaneamente símbolo de um passado que precisa ser superado e de um futuro que o toma como modelo.

Como uma artista empenhada que é, nascida em 1950 e, portanto, autêntica integrante de uma geração para a qual a arte e a cultura constituem privilegiadas vias de acesso aos chamados “conteúdos de consciência”, Denise Stoklos propõe nesta Carta ao pai que o teatro jamais abra mão de seu incomensurável poder de elucidação. Não é possível aceitar sem problemas a imagem do pai, tanto no âmbito da existência privada, como em todas as esferas da vida pública. É preciso combater os tiranos medíocres que nos rondam, sem, entretanto, ceder ao apelo fácil da autocomiseração. O sentimento de fracasso que acompanhou toda a existência de Kafka – adverte a poderosíssima performance de Denise Stoklos – deve servir de alerta a todos os homens, em especial ao homem brasileiro, despersonalizado e entregue à própria fragilidade dentro de uma ordem arcaicamente patriarcal que de modo tão despótico parece se comprazer em engoli-lo sempre.

É preciso resistir ao pai, sem, entretanto, perder a delicadeza do filho. Como propõe o belo encerramento do espetáculo, no qual Denise Stoklos despede-se do público por meio de uma coreografia mínima em que o gesto – patético, sensível, sublime – é marcado pela execução de “Saudades de Matão”, uma canção provinciana lindamente entoada por Tonico e Tinoco. Províncias vivem sob a autoridade de um poder central. Mas províncias também significam o “interior” de um país, de uma região, de uma alma, que, aqui, mergulha no fundo de si mesma e atinge o fundo do poço, de onde sai fortalecida pelo compromisso de se conhecer melhor.

Carta ao pai
Onde: Teatro Sesc Anchieta – Rua Doutor Vila Nova, 245 – Vila Buarque – SP
Quando: até 29/09. Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h
Quanto: R$ 32
Info.: (11) 3234-3000 ou http://www.sescsp.org.br

 

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