Capital como linguagem: sobre sofrimento e estado de choque políticos em um mundo de V.I.P. s

Capital como linguagem: sobre sofrimento e estado de choque políticos em um mundo de V.I.P. s

Estamos em estado de choque político. Podemos falar em trauma. Não sabemos avaliar a extensão do que vem nos acontecendo. Além disso, há algo de emudecedor na política de choque que experimentamos atualmente. Os mais anestesiados não percebem que choques vem sendo aplicados no corpo social – desmonte dos sistemas de saúde, da cultura, destruição da economia, de programas sociais voltados à educação e aos direitos trabalhistas – com meticulosidade perversa. É a meticulosidade da operação capitalista em seu estágio neoliberal que se resume de um modo simples: quem não tem “capital” não tem como se proteger.

Dizer capital parece algo abstrato. É verdade que o capital é abstrato como um Deus, mas ele é abstrato muito mais como linguagem. Ele funciona como um código de acesso a uma política destrutiva e a uma estética de aparências. Você pode ou não falar a língua do capital, e se você não fala, você está fora. Ética, que seria a reflexão sobre a dimensão do outro, é algo que serve apenas de fachada para não deixar parecer que a política neoliberal (uma economia política) é política de choque e, bem ao fundo, um projeto em que o extermínio é inevitável quando o cidadão não fala a língua do sistema, ou seja, não se torna útil para os fins do mercado, da produção e do consumo.

A democracia que em sua forma mais elaborada teria tudo a ver com a ética, pois seria uma política do outro, com o outro, é um regime de governo – de pensamento, de afetos e de ações – que não sobrevive com os meios do neoliberalismo.

V.I.P.

O corpo dos cidadãos sofre na pele e na carne, aquilo que é produzido pelo sistema em termos de choque. O choque faz sofrer. Sem educação pública, sem um sistema de saúde para todos, sem projetos que visem a diminuição da desigualdade social – ao contrário, com sua promoção -, as pessoas sucumbem impotentes tentando de sol a sol sobreviver com o mínimo. O aumento do desemprego, o número cada vez maior de pessoas vivendo nas ruas, as piores condições de vida para todos, são a prova de que a política do choque neoliberal age de maneira biopolítica, ou seja, aplicado a uma população em geral. Mas não só, ele age também de modo, anatomopolítico, de um modo particular. Daria para dizer que age caso a caso, pegando cada um onde cada um é qualquer um. Ou seja, há uma captura insistente sobre cada indivíduo que é tratado como “caça”. E a captura se dá materialmente. A captura seduz e oprime no que há de mais particular e próprio a cada pessoa. Seus corpos, suas vidas, o dia a dia onde cada um é gente simples e comum. Isso não vale para quem fala a língua especializada do capital e se é ungido com o sinal sagrado de V.I.P. (Very Important People).

Gerhard Richter, Neger (Nuba), 1964

A tortura e a morte

Se pensarmos no choque elétrico, na tortura administrada para causar sofrimento no limite da morte, podemos entender melhor o que está em jogo. A tortura funciona apenas se evita que o torturado morra. Enquanto controla a morte nela uma administração do sofrimento. A morte está presente na tortura, mas como algo vetado ao indivíduo que deve viver para sofrer. Para que seja possível sentir o mal e cada vez pior é preciso estar vivo. Muito do que experimentamos no regime capitalista tem a ver com isso. E o próprio sistema se encarrega de transformar o sofrimento em mercadoria. A indústria farmacêutica e a cultura da psiquiatrização da vida fazem parte disso porque o capital gosta das coisas abstratas, ele sabe que não é possível seguir sem controlar qualquer um de perto, de dentro.

Se pensarmos na tortura em termos coletivos entenderemos que a morte de todos não interessa, muito menos de uma vez só. Alguns morrem, mas os que morrem não são os ungidos com o incenso de V.I.P. Seria contraproducente, pois a produção e o consumo é feito por pessoas adestradas para isso. Nesse caso, o sofrer mostra sua dimensão muito útil. As pessoas que sofrem sucumbem com mais facilidade. São mais fáceis de dominar. Sobretudo se o sofrimento que podem sentir for burocraticamente administrado.

As pessoas que sofrem, as que ficam à margem da sociedade, ainda podem ser usadas pelo sistema econômico que ao longo dos séculos os formou renovando a cada dia, a desigualdade como se ela fosse um contrato, um acordo pré-estabelecido pela liberdade de todos. Pobres e escravos sempre foram úteis e para que continuem sendo, precisam ser amansados e o são, facilmente, pelas seduções do poder. Parece que não há sofrimento porque tudo parece da ordem da sedução.

 

A promessa é a alma do negócio

Para garantir o poder da política do choque neoliberal, as pessoas precisam acreditar que são livres, que estão crescendo, avançando de algum modo, com seus esforços e com Deus, que tudo está melhor hoje ou que vai melhorar amanhã. A promessa é a alma do negócio, o que une capitalismo e religião. Cada vez mais dóceis pelos sedativos e entorpecentes capitalistas sob as suas diversas formas, as pessoas se entregam. A docilidade com que escutam música ruim, com que comem comida do pior tipo, industrializada e transgênica, com que recebem salários humilhantes, com que aceitam ser traídas e aviltadas pelo Estado e pela televisão e seus sacerdotes canastrões, é de dar dó. Aqueles que se dispõem a trabalhar sem pensar nas forças das quais são joguete são ensinados a não reclamar, a pensar que um dia receberão as honras do mérito que os torna especiais. Eles precisam iludir-se de que são “especiais” como aqueles V.I.P. para os quais trabalham.

A propaganda e a igreja fazem cada um se sentir especial. A adesão aos líderes fascistas e à “direita fashion”, tão burra quanto cafona, faz cada qual se sentir o máximo. Ela é efeito de um processo de subjetivação cuja profundidade é a do vazio sem fundo.

 

Morte à vista

A morte é evitada na tortura e o sofrimento é administrado. A morte continua acontecendo. Quando se trata da morte de populações, é chamada de genocídio, quando se trata da morte de um só, e se ele for negro e pobre, não tem valor. Falar nessas mortes é inconveniente, não pega bem para os padrões de bom comportamento da classe média, do que chamamos às vezes de burguesia e que, segundo uma letra de Cazuza que não pode ser esquecida: fede. É igualmente inconveniente falar da morte lenta das populações que dependem de um Estado de bem estar, porque a única democracia que o neoliberalismo garante é a da morte democraticamente partilhada. A morte está à vista. Mas nem todo mundo consegue ver. Enquanto isso, a morte é paga à prestações.

Nesse momento não é bom falar nesses termos. Essa perspectiva assusta. A pecha de pessimismo, de esquerdismo, de comunismo vem para esconjurar o mal estar geral. A matança segue com ou sem os silêncios ou os bons sentimentos que nos fazem falar alguma coisa e ter que prestar contas diante de um número curioso de fascistas que não são tantos, mas fazem muito barulho, pois descobriram o capital como linguagem e a linguagem como capital. Para alguns, apenas chatos autoritários que sobrevivem de ideias idiotas, mas que são pessoas muito perigosas, por que cheias de maldade e má fé, sejam líderes, sejam seus seguidores ou puxa-sacos.

Indígenas, jovens negros, mulheres e pobres são mortos celeremente no abandono geral que salva apenas quem é V.I.P., mas a morte não deve aparecer, nem ter o nome de matança ou genocídio. Não nos acostumamos à morte, mas ao silêncio. Ele nos protege. A morte deve ficar oculta para o bem da imagem do sistema. Discursos religiosos e políticos e o que mais for veiculado pelos meios de comunicação tem essa função. A poderosa função do acobertamento. O acobertamento da morte.

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