A candeia do corpo 

A candeia do corpo 
(Ilustração: Marcia Tiburi)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de fevereiro de 2021 é “sonho”.


Na noite passada sonhei que militares invadiam residências para apreender documentos que pudessem ser comprometedores ao governo. Éramos enfiados em carros e, no trajeto, fomos orientados como tínhamos que nos comportar para não atrapalhar a operação. Meu irmão, de outro carro, gritou para que eu fosse com nossa mãe, com um tom do desespero para que nos cuidássemos.

O “cidadão de bem” sequer limpou os pés para adentrar nossa casa e começou a revirar os documentos que minha mãe armazenava em plásticos separados por assunto. Eu não soube bem o que fazer, mas segurei minha mãe e fiquei alerta caso alguém se atrevesse a agredi-la. Uma bagunça, alguns itens da casa foram danificados, um mix entre resistência e impotência foi o que restou daquele episódio.

Fora do sonho, o medo era proporcionalmente menor, contudo o corpo sabia exatamente da arbitrariedade e da falta de perspectiva vividas atualmente. A situação sanitária longe de qualquer controle, um coletivismo frágil e o custo na ilusória adaptação deste confinamento tem emperrado a manutenção de uma saúde básica.

O sonho não progrediu, mas se seguisse, certamente teria acontecido uma faxina. Após meus panes, a limpeza igualmente se inicia, ainda que meio no piloto automático. Quem manda o corpo agir assim?

Deixar morrer aquilo que não é mais passível de cuidado. Eutanásia.

Aqui (dentro de mim), parece sempre haver sentimento que se sustente.

Eles só não morrem de vez porque buscam por cipós, avistados relativamente próximos. Me penduro neles com esforço, e me vou para lado e outro, e nem sempre me valho de estratégias prévias.

Deixar de me jogar e me segurar, deixar de fazer ou de me reinventar: são posturas que repelem insistentemente a falta de opção, a inércia e o conformismo.

O corpo escolhe e é bom saber disso. Mas eu nem sempre sei, e esta é a parte mais angustiante. Mais, porque quando a gente sabe, não significa que estamos necessariamente isentos de dor; o tempo parece correr em outro plano.

Enquanto essa pandemia persistir, me perguntarei se estou olhando para o meu corpo da mesma forma que ele olha para mim.

 

Tania Naomi Yoshida, 35, é pianista e
professora de língua japonesa. De vez em
quando, se arrisca em outros discursos de sensibilidade

 

 

 

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