A Cabeça do Santo – de Socorro Acioli

A Cabeça do Santo – de Socorro Acioli

“A Cabeça do Santo” é o primeiro livro para adultos de Socorro Acioli. Classificação é uma coisa que soa sempre meio burocrática. Mas ainda é um assunto entre nós. Por ocasião de sua participação no projeto “Sempre um Papo” do Afonso Borges,  eu tive a oportunidade de falar com ela e perguntar qual seria a diferença entre uma coisa e outra. Ela comentou que há alguns assuntos, tipo sexo-drogas-rock and roll que não devem constar nos chamado infanto-juvenis. Sei lá, fiquei pensando: as crianças andam convivendo cada vez mais com essas coisas, fica difícil saber quando a literatura pode ou não trabalhar com esses temas e, sobretudo, de que maneira. O assunto pertence àquela esfera em que o estético e o ético se entrelaçam de maneira inevitavelmente tensa, porque ética não é moral e nem censura…

“A Cabeça do Santo” não tem nada que crianças não possam ler sob nenhum aspecto. Mas de fato não se destina a elas. Embora Socorro Acioli tenha dito que algumas andam lendo. Eu li com meus olhos de criança que são meus melhores olhos. Li imaginando aquela quantidade toda de personagens que sempre ficam como fantasmas incompletos na minha imaginação. Por isso eu gosto mais de literatura do que de cinema. Gosto da neblina literária, daquele espaço que ainda promete sonho. Óbvio que o livro lembra “Cem Anos de Solidão”, lembra “Pedro Páramo” e esse tipo de literatura que alguns chamam de fantástica. Literatura de verdade, é sempre algo fantástico, e fantástico, de outro modo, me parece ser que, num mundo como o nosso – dominado por todo tipo de distração – haja quem leia livros.

Bom, todo mundo sabe que Socorro fez uma oficina literária com o García Márquez. O livro tem a ver com esse universo. “A Cabeça do Santo”, contudo, é um livro brasileiríssimo e nordestino. É uma história super bem contada que tem como base a tal cabeça do santo que parece ser um fato verdadeiro que se passou em algum ponto do sertão nordestino. Eu realmente não guardei se a história real toda aconteceu no Cariri (e não achei na internet), em Juazeiro do Norte, onde se passa a ficção. É a história de uma estátua descomunal de santo Antônio, cuja cabeça não pode ser colocada no corpo por algum motivo técnico e que sobrou como uma excrescência na cidade de Candeia. Candeia é a cidade onde chega Samuel, filho de Mariinha, neto de Nicéia, amigo de Francisco, etc. etc.

Fato é que Socorro usa algo de real, embora pareça absurdo (e parece que o próprio García Márquez achou a história inverossímil) para criar sua ficção. Nenhum problema. O papel do escritor é impresso com a força da narrativa, a força do seu corpo transformado em voz, voz na forma de letra. Quero dizer: o jornalista que escreveu a notícia usada por Socorro não é uma narrador, é um profissional dando a sua notícia do modo mais objetivo possível. Ele não precisa fazer nada com o fato além de contá-lo. Socorro Acioli cria a narrativa com uma força de estilo que tem momentos bem altos no texto. Não é que ela interprete, é que ela recria o fato e o fato se transforma em outra coisa. Como no começo do livro quando Samuel chega a Candeia todo estropiado: “Do outro lado da estrada, em direção contrária, caminhavam exemplares do seu extremo oposto.”

Esse é um exemplo do teor literário do texto que não cabe na notícia. Essa parte é que faz a diferença. É nela que nasce a viagem que é toda literatura e que nos leva, em qualquer idade, à experiência radical da invenção da vida. Na literatura a gente aprende a pensar e começa a entender o que é viver. Sem exagero, sem nada de fantástico, a literatura é essa arte de dizer o mundo mesmo quando ele não está disponível.

Então, podemos ler, porque é absurdo e, no entanto, existe.

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