Estante Cult | Stálin de través no tempo

Estante Cult | Stálin de través no tempo

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Para um leitor ocidental afeito à psicanálise, uma primeira leitura de O bom Stálin, do escritor russo Víktor Eroféiev (1947), certamente poderá constituir um farto material para interpretações edipianas. Nas primeiras linhas, o autor anuncia o parricídio simbólico que cometeu aos 32 anos e, ao longo de seu caudaloso romance autobiográfico (ou romance de formação?), retorna com insistência à figura paterna, Vladímir Eroféiev, a ponto de o pater familias confundir-se com o ditador soviético.

Publicado originalmente em 2004, a obra mistura diferentes registros literários para abordar a formação do escritor entremeada à sua trajetória pessoal e à vida russa, com especial enfoque em Stálin e no stalinismo, como já anunciado no título. Morto em 1953, quando o autor tinha cinco anos de idade, o ditador aparece com recorrência através das memórias de seu pai, Vladímir — tradutor pessoal de Stálin, assessor da feminista Alexandra Kollontai e ajudante no Kremlin de Mikhailovitch Mólotov, primeiro ministro da URSS (e inspiração para o famoso coquetel incendiário) —, e para isso Eroféiev explora ficcionalmente, pela memória paterna, as reuniões do alto escalão stalinista.

Sua mãe trabalhava no Departamento de Imprensa do Ministério dos Assuntos Estrangeiros (MID), lendo e reportando as notícias sobre a URSS que circulavam por jornais e revistas norte-americanos. É desse ponto de observação privilegiado, como um “filho do poder”, que o narrador relembra sua infância em Paris, quando seu pai era adido cultural da embaixada russa; a vida em Moscou ao lado da avó, quando o pai é nomeado embaixador russo do Senegal e de Gâmbia; seu amadurecimento como escritor e a constituição de uma família, quando Vladímir era embaixador em Viena.

Com a maturidade do narrador, as disputas familiares se acirram: escritor à gauche, ele questiona as convicções políticas de seu pai, um “falcão” dos meandros de Stálin. Justamente por desfrutar a “doce vida stalinista” envolto em privilégios como em “nuvens ternas”, ele observa as contradições e os absurdos da vida soviética: mesmo os pais aferrados ao comunismo usufruem com volúpia dos artigos luxuosos de Paris, temerosos com a volta à URSS. Durante os anos escolares na Rússia, enquanto o pai trabalhava na embaixada na África, são inevitáveis as comparações da vida parisiense com a pobreza soviética: crianças sujas e maltrapilhas, brinquedos e vestimentas pobres, as “humilhações de morar num apartamento comunal”, de que Eroféiev foi poupado por ser membro da elite.

Tal a contrariedade do narrador com o regime oficial que, mesmo considerando-se de esquerda, narra com franqueza: “fiquei extasiado com a junta de Pinochet, o triunfo da CIA. Fiquei satisfeito com a morte de Allende”. Do outro lado da moeda, seu pai cola-se à figura do “bom Stálin”, também uma representação do líder; por isso, a recusa do sistema político soviético implica o parricídio simbólico. Essa transposição, se não é explicitada, também não passa despercebida à escrita aguda e feroz de Víktor Eroféiev: “Sigmund Freud, cidadão honorável de Viena, ponto de encontro da espionagem internacional, da necrofilia, das tortas e da música, deve estar contente comigo: eu trouxe uma contribuição pessoal à sua teoria da relação entre pais e filhos que se tornou lei por um século”.

A ironia com o ânimo psicanalítico amplifica-se ao pensarmos nessa projeção do bom Stálin a partir dos sistemas simbólicos russos: o ditador cola-se à figura paterna, como a maioria da população russa o cultua como um pai, não tanto pelas pulsões edipianas, mas pela mobilização do culto à personalidade. Stálin centralizou a vida sociopolítica da União Soviética em si e, mesmo após sua morte, continuou vivo no imaginário russo. “A natureza dos russos é stalinista” e “todo governante da Rússia entra involuntariamente em sintonia com a onda stalinista”, isto é, os russos “não acreditam em um Stálin ruim. Não acreditam que ele possa ter atormentado e torturado alguém. A população preservou a imagem do bom Stálin, salvador da Rússia e pai da grande nação”. Por isso, ao líder soviético o narrador atribui a criação do “totalitarismo mágico”, em eterno retorno, almejado pela população, não obstante o Gulag, as execuções e perseguições.

Na contraparte da política soviética, outro tema central do livro é a literatura, desde as experiências iniciáticas do autor até sua afirmação existencial pelo labor da palavra. Nota Irineu Franco Perpetuo, em Como ler os russos, que a literatura ocupa uma posição única no mundo russo, “um país em que atores dão recitais de poesia, em que a televisão tem mesas-redondas discutindo literatura e em que escritores fazem concorridas conferências com cobrança de ingressos”, o que se reflete na própria estrutura do romance. Víktor Eroféiev, que se doutorou com a tese Dostoiévski e o existencialismo francês (também publicado pela Kalinka), mescla ao texto os clássicos eslavos, Gógol, Górki, Pushkin, Turguêniev etc. para falar da realidade social de seu país, pois são eixos de compreensão e análise do mundo. Assim como, ao ser admitido na União de Escritores em 1977, o narrador relata o prestígio do ofício literário naquele país, cujo governo subsidiava a moradia e o trabalho dos escritores, fornecia clínicas médicas exclusivas e custeava viagens pelo país e para o estrangeiro.

Ocupando tal lugar de proeminência, a literatura também se torna espaço de disputa política. Então a censura, a exclusividade do realismo soviético, o vínculo direto entre o artista e o partido: “A língua é o único argumento a favor da existência da Rússia. Era vital para o partido ter o monopólio da palavra, como também da vodca”. Ainda sob as asas de um anjo torto, Eroféiev é expulso da União dos Escritores após sete meses, pois arma uma “bomba atômica literária”: a idealização e publicação da revista literária Metrópol, com mais de 800 páginas de textos contemporâneos proibidos pela censura soviética.

A explosão é desastrosa. Mesmo passados 25 anos da morte de Stálin, podiam-se sentir as correntes gélidas dos Gulags pelo hálito de qualquer partidário da URSS, fosse escritor ou policial. Aos autores publicados no Metrópol, reservaram-se perseguições políticas, proibições de publicações, exílios e, no caso de Víktor Eroféiev, a morte política de seu pai, demitido de seu cargo, enxotado da embaixada de Viena e recluso em ostracismo, a observar os amigos próximos afastarem-se do pai de um dissidente.

Se o poder, na Rússia, revela-se “grosseiro, vomitado, feito de piadas de homens, obscenidades, bifes de carne crua, esquecimento, mente fechada, bebedeiras de dias, sadismo, arrotos de cebola, impunidade, humilhação de todos”, com Stálin atravessado no tempo, da URSS aos dias de Putin, a literatura aparece na obra como forma de desvelar o “poder nu e cru”, confrontar o estabelecido e modular a formação nacional.

Já que a história não dá conta de Stálin, a literatura ao menos o tenta. Não só o Metrópol matou politicamente o pai do narrador, como “matou a literatura soviética”. Em atitude reversa, com o “totalitarismo mágico” dos trópicos, a censura às bibliotecas espantosamente promovida não pelo governo, mas pelos próprios cidadãos, observamos ainda a potência incendiária da literatura, como o gesto artaudiano de “tirar do bolso bombas e soltá-las na cara” de uma plateia modorrenta e afeita apenas aos bens culturais que lhe são incólumes.


ESTANTE CULT | NOTAS
Welington Andrade

Um clássico absoluto dos estudos teatrais contemporâneos acaba de ser relançado pela mesma editora que o publicou em 1976 no Brasil: Em busca de um teatro pobre (Civilização Brasileira), do encenador polonês Jerzy Grotowski (1933-1999). Embora pareça destinado exclusivamente aos criadores das artes cênicas – nos anos 1970 e 1980, a obra tornou-se uma verdadeira febre entre alunos de escolas de teatro e atores e diretores de grupos em início de carreira –, o livro, por lançar mão de muitas fontes inspiradoras, como as ideias psicanalíticas de Freud e Jung, os conceitos filosóficos orientais, as ciências herméticas e a parapsicologia, certamente haverá de interessar ao leitor que tenha uma visão sincrética do mundo ou que esteja à procura dela. Como afirma o crítico Yan Michalski no texto de orelha, “o interesse do livro transcende de longe os estreitos limites da criação teatral propriamente dita”. Traduzido pelo dramaturgo e professor Aldomar Conrado e prefaciado, nessa reedição, por Peter Brook, Em Busca de um teatro pobre convoca à reflexão mais genuína. Quando um entrevistador lhe interpela “Você nos deu certo número de detalhes técnicos, mas que dizer da sua filosofia da arte?”, Grotowski responde: “Uma filosofia sempre vem depois de uma técnica! Você anda na rua com as suas pernas ou com as suas ideias?”.

Curitibana de nascimento, mas radicada em São Paulo, Sabina Anzuategui é autora dos roteiros cinematográficos de Desmundo (2003), Quanto vale ou é por quilo? (2005), Como esquecer (2010) e Ausência (2014) e dos romances Calcinha no varal (2005), O afeto (2011), Luciana e as mulheres (2019) e Uma mulher sem ambição (2021). Seu mais novo romance, Escrevi para você hoje, constitui uma viagem pelos anos entre 1990 e 1992, retratando a troca de cartas entre a dupla de protagonistas, Luísa e Érica, respectivamente, uma jovem adolescente prestes a completar 17 anos e uma jornalista da revista Twist, que têm em comum os sonhos, as aspirações, as alegrias e as desilusões típicas dos anos que assistiram à eleição do primeiro presidente civil depois de 21 anos de ditadura militar. Filiado ao gênero do romance epistolar – não à toa, o livro adota como epígrafe uma das cartas que Lucy Westenra envia a Mina Murray em Drácula, de Bram Stoker, obra também aludida na própria narrativa –, Escrevi pra você hoje traça um bom panorama do jornalismo cultural exercido há três décadas, além de fazer referência a livros, filmes, discos, gibis, fanzines, dentro outros produtos culturais, certamente desconhecidos pelas novas gerações.

Embora corresponda ao período inicial de mandato do derradeiro presidente que governou o Brasil durante a ditadura militar instaurada em março de 1964 e somente encerrada duas décadas depois, o ano de 1979 testemunhou um florescimento artístico-cultural dos mais intensos e luminosos, que pautou boa parte das discussões sobre política, comportamento, direitos humanos, sexualidade, educação… Assumindo posição de destaque nessa seara, dada sua franca interlocução com o grande público, a música popular brasileira, chamada então de MPB, fez o país escutar, de Norte a Sul, o que compositores, intérpretes, arranjadores e músicos tinham a dizer. E eles tinham muito a comunicar, conforme atestam as páginas de 1979: o ano que ressignificou a MPB. Organizado por Célio Albuquerque, o livro reúne as histórias de 100 LPs lançados naquele ano, resgatadas por artistas e jornalistas que, em textos que primam pela informação de qualidade, não somente tratam de cada disco como também retratam o surgimento de um país que, sufocado por anos de opressão, via na liberdade e na solidariedade as vias de acesso ao futuro.

 

“Estava arrependido por não ter tomado um avião. Teria chegado a Nova York impelido pelo ritmo de negócios importantes, da alta política, dos personagens sorridentes das telefotos: o jeito certo de ir aos Estados Unidos de hoje. No entanto, fui convencido a viajar de navio – Nem se compara! É tão bonito! –, o transatlântico americano mais moderno que saía de Le Havre. E então eu já desembarcava oprimido pela sombra de outra América: uma América de tédio provinciano, de casais velhos e entediados, de bem-estar apático, de escassez de recursos vitais anímicos”. É por meio dessa irônica ambiguidade que o escritor Italo Calvino inicia Um otimista na América: 1959-1960, misto de literatura e jornalismo que retrata os seis meses em que ele esteve em viagem pelo “país dos homens que escolheram a geografia, e não a história”. Embora a intenção inicial do escritor fosse transformar suas andanças em solo americano em uma espécie de As aventuras de Gulliver, seja pelas aventuras, seja pelas desventuras vividas por lá, o livro só foi lançado postumamente pelo fato de Calvino o ter achado modesto demais como obra literária e não suficientemente original como reportagem jornalística. Não há dúvida de que se trata de um julgamento muito severo por parte do escritor, uma vez que o livro constitui uma excelente reflexão sobre os Estados Unidos da América, país cujo pendor mítico já começa em seu nome de batismo.


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