O dia em que o presidente cancelou a ditadura

O dia em que o presidente cancelou a ditadura
Manifestação no Rio de Janeiro em 1968 contra a ditadura militar (Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã)

 

O presidente Jair Bolsonaro determinou que as Forças Armadas comemorem o golpe militar de 31 de março de 1964. Coube ao seu porta-voz, um general, explicar por que razão um presidente que se demonstra extremamente preocupado com a ditadura na Venezuela ou em Cuba acha digna e edificante a terrível ditadura militar brasileira, ao ponto de mandar que seja celebrada.

Ainda mais se pensarmos que a população brasileira é formada hoje por 54 milhões de pessoas com 50 anos ou mais. São pessoas que tinham, portanto, no mínimo 15 anos de idade quando a ditadura militar acabou, e das quais se espera que tenha recordações do período não por ouvir dizer ou por ter lido, mas na forma de memórias pessoais. Tivesse sido cancelada por decreto de Sua Excelência, a ditadura do Estado Novo (1937-1945), a peleja seria apenas com historiadores e livros, mas disputar com a memória de pessoas ainda vivas e lúcidas? Que sentido ou ganho há nisto?

Vejamos a explicação dada pelo general porta-voz de Bolsonaro:

“O presidente não considera o 31 de março de 1964 golpe militar. Ele considera que a sociedade, reunida e percebendo o perigo que o país estava vivenciando naquele momento, juntaram-se civis e militares, e nós conseguimos recuperar e recolocar o nosso país num rumo que, salvo melhor juízo, se tudo isso não tivesse ocorrido hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém”. O texto é ruim, mesmo, não foi erro de transcrição.

Como assim, “o presidente não considera golpe militar”? De onde lhe advém a autoridade para decidir de forma monocrática sobre a natureza de fatos históricos sobre os quais não recai qualquer dúvida cientificamente válida? Certamente não foi dos votos que o elegeram, uma vez que votos tiveram o condão apenas de fazer com que a maioria dos que foram às urnas o escolhessem presidente da República. Nem de longe, contudo, convertem-no em juiz de fatos históricos nem o transformam no Oráculo de Delfos. Por que, então, ele se julga autorizado a revisar fatos históricos, ainda mais um fato desta monta e de que tantos ainda se lembram por vivência pessoal, conforme a sua conveniência ideológica?

Pois bem, uma das características mais notáveis, registrada pelos pesquisadores universitários da política, dos movimentos da direita conservadora que começaram a pipocar no mundo desde 2016, é a chamada epistemologia tribal. A sua origem é uma decisão de que não existem mais instituições e autoridades neutras, imparciais e objetivas acerca dos fatos. Para a nova direita americana e brasileira, cientistas, intelectuais, professores e jornalistas, a quem reputamos autoridade epistêmica para arbitrar em disputas sobre fatos, fracassaram no seu papel de produção de conhecimento seguro e imparcial, uma vez que estão todos historicamente comprometidos com os valores dos adversários da direita, a saber, os valores dos liberais e da esquerda. Foram irremediavelmente infiltrados por comunistas, relativistas, ambientalistas, globalistas, feministas, marxistas culturais, ateístas e outros desta catadura.

A nova direita, como todo movimento social que pretende representar uma inovação importante na história, compartilha a crença de que está sitiada por hordas selvagens e desregradas de inimigos poderosos. E descrê, naturalmente, em instituições objetivas e confiáveis de mediação. Quanto mais é intensa a crença no cerco do inimigo, maior é a desconfiança de tudo o que vem “de fora”, e ainda maior é a tendência a confiar e depender apenas de “nós mesmos”, da nossa tribo. O ideal é autossuficiência em fontes de informação e conhecimento. A epistemologia tribal consiste justamente na decisão de filtrar toda informação e todo o conhecimento a partir de um único parâmetro: a conformidade aos objetivos da tribo e aos seus dogmas fundamentais, desde que, naturalmente, tal conformidade seja devidamente chancelada pelas autoridades tribais. O critério de verdade, portanto, passa a ser derivado do nível percebido de utilidade para nós: o verdadeiro é igual ao que é bom para nós.

Foi baseada no princípio da epistemologia tribal que a nova direita “precisou formar”, em lugar das comprometidas instituições epistêmicas do passado, o seu próprio “jornalismo”, ou uma nova ecologia midiática baseada em sites de notícias e mídias sociais, para produzir a sua própria informação – fenômeno que nós conhecemos por fake news. Mas também precisou reconhecer e conferir poder simbólico aos seus próprios intelectuais e à sua própria ciência. Que, por conseguinte, não precisam de reconhecimento, prestígio ou distinção outorgados e distribuídos pelos respetivos campos intelectuais e científicos, como costuma acontecer com qualquer um que se reivindique intelectual, cientista ou filósofo. A sua autoridade é gerada intra muros, o seu capital social é imanente ao próprio campo social da direita, é para uso e consumo exclusivos da própria tribo. Assim como as notícias autogeradas no interior do próprio sistema da direita não precisam se submeter aos parâmetros reconhecidos de verificação e validação da instituição do jornalismo, os cientistas, intelectuais e filósofos da direita sequer precisam reconhecer os parâmetros pelos quais seriam julgados, é-lhes bastante o reconhecimento dado internamente pela tribo. Cujo critério de validação é basicamente a afinidade ideológica.

Pois neste episódio do apagamento da ditadura militar por decisão monocrática de Sua Excelência está mais um exemplo disso.

Bolsonaro mandou comemorar o dia do golpe militar, porque acredita que a sua vitória eleitoral cancelou o fato da ditadura ou lhe deu autorização para tanto. Para a nova direita, não existem mais fatos, só a interpretação ideológica dos fatos. Não há mais ciência, vez que cada ideologia interpreta a realidade em coerência com as suas crenças. Verdade absoluta não há mais, só a verdade dos que ganham a eleição. A objetividade tampouco existe, o único critério que realmente conta é saber se é bom para nossa tribo ou ruim para ela.

Ao mesmo tempo, qualquer interpretação dos fatos que seja ruim para os nossos inimigos deve ser boa para nós. Não importa se a ditadura militar se caracterizou, de fato (quando ainda havia fatos), pelo fechamento do Congresso, por censura implacável à imprensa, pela cassação de direitos políticos e violação de direitos civis, por perseguição, tortura e assassinato de adversários e dissidentes políticos, por brutal violação do Estado de Direito. O que importa é que devanear que se está cancelando a ditadura por ordem presidencial parece bom para a direita e irrita a esquerda. Esqueça o que você aprendeu na escola e no jornalismo, o que você aprendeu de intelectuais e cientistas sobre fatos e leis naturais, nada disso está mais valendo, dado que são todos doutrinadores ideológicos da esquerda, manipuladores e mal-intencionados. A ciência, a escola e o jornalismo foram suspensos e substituídos pela autoridade dos chefes tribais da direita. E se Bolsonaro considera que não houve um golpe militar no Brasil, pronto, como por mágica a ditadura acabou de ser revogada.

Na verdade, caso isso ainda não tenha resultado claro para o leitor, Bolsonaro está falando diretamente para a tribo da direita conservadora, que é quem lhe empresta atenção e crença absolutas.  E, indiretamente, está produzindo mais uma das suas inacreditáveis pirraças “ao outro lado”. A mensagem é clara: ganhamos a eleição, agora quem decide o que que existiu e como existiu somos nós.

Achou demais? Ora, meus amigos, se a nova direita acredita que a Terra não é redonda, mas plana, se tem convicção de que vacinas fazem parte de um plano diabólico para matar as pessoas, e se, por fim, está convencida de que o aquecimento global é uma invenção de cientistas da esquerda comunista, por que diabos não poderia começar a decretar que não houve o holocausto na Alemanha, a ditadura militar no Brasil ou o Apartheid na África do Sul? E dê-se por satisfeito que Bolsonaro não decidiu pôr fim à lei da gravidade, caso contrário estaríamos a este ponto já à deriva no espaço. Sejam todos bem-vindos ao mundo maravilhoso da epistemologia tribal de direita. E, naturalmente, parabéns ao Brasil que escolheu um dos seus exemplares para presidir o país.

 


Leia a coluna de Wilson Gomes toda sexta-feira no site da CULT

(3) Comentários

  1. Você fala muito bonito e verborragiza bastante teoria no seu texto, ao mesmo tempo em que não sabe da parte mais rudimentar do que está falando:

    Bolsonaro não “mandou comemorar” o golpe militar. A dita comemoração, que é mais a lembrança de uma data que fez parte da história do Exército do que uma cerimônia saudosa e apologista à mesma, também ocorreu nos primeiros 14 anos que seguiram à redemocratização, incluindo durante governos de centro-esquerda. O que ele fez foi apenas não suprimir o evento como os governos petistas fizeram. Aqui, sem nenhuma genialidade requerida, se derruba todo o seu argumento através dessa premissa, e o que sobra da sua pomposidade?

    Em suma, você é o retrato de quem você acha que deveria representar nossa “epistemologia confiável”. Você de fato tem o conhecimento, a retórica, e uma legitimização que parte de toda uma bolha que pensa igual a você. Ainda assim, você esquece do básico do básico de qualquer princípio de discussão racional ao se basear somente em manchetes, refutadas no corpo de seus próprios artigos, para escrever uma dissertação desse tamanho.

    E você não se esquece por descuido; não é isso que faz o dito acadêmico, do qual em sua racionalidade todos deveriam confiar, agir como uma vovó do WhatsApp que compartilha o primeiro link que recebe como se fosse uma verdade absoluta. Isso é, na verdade, produto de conveniência ideológica e da pretensiosidade nojenta sua e de todo o resto de sua casta.

    Se confirma sua visão de mundo, se confirma a visão de mundo da nossa querida “elite intelectual”, só pode ser verdade, não? Já, se a contradiz, tanto pós-doutor esquece até de aritmética básica para se juntar nos movimentos da USP contra a reforma da previdência, não é verdade? Rs.

    Sabe, eu reconheço que é um problema que uma parte da direita tenha chegado a um ponto em que não só relativiza a palavra dos cientistas, mas também o método científico em si. Isso não é um monopólio da direita, a esquerda também o faz sob a premissa de justiça social, porém essa não é a questão aqui. O ponto é sim sua falta de autocrítica, quando seu texto tendencioso, o qual é muito inteligente, e, simultaneamente, extremamente burro, acaba por ser só mais um motivo para que engajem nesse comportamento que você condena.

    Aliás, eu disse que essa não é a questão, mas, em grande medida, é sim. A esquerda tem muita prevalência entre os seguidores de teorias de conspiração. E eu não vou nem entrar no exemplo latino-americano típico de “every crysis is a CIA conspiracy”, e nem falar que certas ideologias com grande prevalência acadêmica shoehorn uma relação unilateral de opressão, intencional num nível objetivo ou subjetivo, em basicamente toda relação componente de nossa sociedade complexíssima.

    Mesmo em teorias de conspiração publicamente reconhecidas e atacadas por cientistas, como a do lobby anti-vacina, a esquerda é a maior força política em vários lugares do mundo. Todas aquelas teorias de “big pharma”, se baseiam numa retórica anti-capitalista. Na eleição americana, o partido que mais compactuou como esse discurso foi o Green Party. Mas provavelmente você nem sabe quem é Jill Stein se acompanhou a eleição americana só por manchetes, como eu posso supor com bastante firmeza que fez após ler esse seu artigo aqui.

    Claramente, você ignora evidência amplamente disponível quando é para, ironicamente, engajar no comportamento que você tanto condena: criar uma divisão entre “nós” e “eles”. E aí você consegue, aos olhos de quem se ilude por palavrório complicado, provar a sua teoria fundamentalmente errada, de que é a direita quem inicia esse tribalismo, ou a única que é parte dele, enquanto, na verdade, você, meu bem, é justamente o maior retrato dela.

    É bem fácil você provar a besteira que quiser quando você só busca corroboração para falar o que quer falar. É fácil quando você torna a Academia um ambiente tão hostil para quem não é um problematizador insuportável, não só para quem é de direita mas também aos centristas, ou mesmo a tanta gente de outras correntes de esquerda, tipo os marxistas que não fazem Marx se revirar no rúmulo. Assim você tem um “safe space” para repetir as suas mentiras sem que haja nunca uma pesquisa sequer visando provar o contrário.

    É desse modo que dinâmicas como “gaslighting”, “mansplainning”, cuja existência nunca sequer foi comprovada por pesquisas quantitativas decentes, se tornam parte de explicações recorrentes a inúmeros problemas sociais em papéis acadêmicos. Não é mérito da sua racionalidade, da sua retórica, das suas horas de estudo. É do seu tribalismo, que me faria estar sendo vaiada desde minha terceira linha de discurso, fosse esse um debate numa Universidade Federal.

    Então, eu queria te trazer essa reflexão. Dissertei por horas a alguém que é parte de uma demografia que tende menos a me ouvir do que um cristão fanático tenderia. Ao menos eu falei bonito, me enrolei nesse circo de “alta discussão” todo, então talvez cative seus olhinhos e abra seu coração. De todo modo, acho que você deveria maneirar na sua arrogância. Pega bem mal nos textos de quem não faz um mínimo de fact-checking 😉

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