Quem lava sua privada?

Quem lava sua privada?
(Arte Andreia Freire)

 

Se a resposta para a pergunta do título for o nome de outra mulher, aquela com quem você compartilha a casa, ou uma diarista, empregada doméstica – provavelmente negra, certamente pobre – te dedico este texto, minha primeira coluna na Revista CULT. Não o faço como provocação! Bem sei como são bacanas as pessoas que leem esta revista. Não quero te acusar de nada, porque, no caso de uma trabalhadora doméstica, sei que você paga um bom salário, com todos os benefícios, e ainda doa roupas usadas à mulher por quem nutre respeito e carinho. Mesmo assim, gostaria de propor uma reflexão. Porque sua ação quanto aos afazeres domésticos, independentemente do que a motiva, é também social e reverbera uma história. Uma história de desigualdade, machismo e racismo.

O recenseamento do Império do Brasil de 1872, dezesseis anos antes da Lei Áurea, indicava que 46,67% da população escravizada na cidade do Rio de Janeiro atuava nos serviços domésticos; 70% dentre as mulheres. A abolição não veio acompanhada por políticas reparatórias ou inclusivas. Não à toa, mais de cem anos depois da abolição, em 1998, 48% do total de mulheres negras trabalhadoras no Brasil eram domésticas. Em 2008, 22%; em 2014, 17%. Uma questão de raça. Mas não só.

Seria impossível aprofundar neste texto a complexidade das relações, marcadas por abusos e também afetos, quando há uma pessoa assalariada na intimidade da casa. Recomendo uma visita à página do Facebook “Eu Empregada Doméstica”, mantida pela rapper Preta Rara, Joyce Fernandes, desde julho de 2016, depois da grande repercussão de um relato publicado por ela: “Joyce, você foi contratada pra cozinhar pra minha família e não pra vc. Por favor, traga marmita e um par de talheres e se possível coma antes de nós na mesa da cozinha; Não é por nada tá filha, só pra gente manter a ordem da casa” Patroa Jussara, em Santos 2009 – meu último emprego como doméstica”.

A hashtag utilizada por Joyce, #EuEmpregadaDoméstica, deu origem à página que republica histórias de mulheres e anúncios abusivos que circulam por todo o país. Mesmo depois da PEC das Domésticas, que, graças à luta organizada, garante direitos a quem trabalha mais de dois dias na semana em uma mesma casa, como jornada de 8 horas diárias e 44 semanais, férias remuneradas e horas extras. Direitos adquiridos somente em 2013, mas que não valem para as diaristas. Estas, segundo o Dieese, eram 30,2% dentre as domésticas em 1992, passaram a ser 39,5% em 2015. Ganham mais por dia, trabalhando em 4, 5, algumas vezes 6 casas diferentes por semana, mas sem carteira assinada, garantia de salário mínimo, 13º, repouso semanal remunerado, férias, aviso prévio, licença-maternidade, vale-transporte ou jornada máxima. Nenhum direito trabalhista, em 2017. A realidade que o governo golpista quer ampliar a todos.

Por mais que haja especificidades nas condições de vida de negras ou brancas, pobres ou ricas, as que têm empregadas ou as que são empregadas, as mulheres, no geral, são responsáveis pelo trabalho doméstico e sofrem com a dupla jornada, como denuncia o movimento feminista há décadas. Segundo dados da Pnad de 2009, os homens sem filhos dedicavam 11,7 horas semanais a afazeres domésticos, enquanto as mulheres, cercade 26 horas. No caso de terem filhos, as mulheres chegavam a despender 33,8 horas semanais nestes afazeres, enquanto os homens dedicavam 10,3 horas. Uma questão de gênero.

“Mas o que sugere, então?”, você pode me perguntar. “Sabe quantas horas por dia trabalho fora de casa? A mulher com quem vivo não é melhor e mais rápida que eu nos afazeres domésticos? E as negras pobres ficariam sem emprego?” Não tenho respostas às suas perguntas. Nem vai ajudar dizer que tenho lavado minha própria privada, que muitas vezes penso em desistir e voltar a reproduzir as relações opressivas do trabalho doméstico remunerado na minha casa. Mas é urgente que, como sociedade, encaremos estas questões em busca de justiça social. O machismo e o racismo estão, também, dentro das nossas casas. E já passou da hora de compreendermos como os problemas sociais macro são produzidos, também, na vida cotidiana.

O livro Revolution at point zero: housework, reproduction and feminist struggle, de Silvia Federici, publicado em 2012 pela Autonomedia, oferece pistas importantes para esboçarmos respostas, e ainda mais perguntas. Ali estão reunidos textos da autora sobre trabalho doméstico e de cuidados, escritos desde 1975 até 2010. A sequência dos textos torna evidente o percurso intelectual de Silvia: de problematizar o trabalho doméstico não remunerado e se engajar na proposta de remuneração destas tarefas, para que as mulheres pudessem ser independentes economicamente dos homens, à percepção de que o feminismo não poderia estar reduzido a uma agenda neoliberal que, ao promover autonomia em relação aos homens, gerasse dependência do capital. Silvia passa, então, a investigar aquilo que tem sido chamado de commons, o comum. Segundo a autora: “que começam por novas formas de reprodução coletiva e pelo enfrentamento das divisões geradas entre nós com base na raça, no gênero, na idade e na origem geográfica.” Reprodução, na economia feminista, diz respeito a todo o trabalho necessário a reproduzir a vida, como cozinhar, lavar, limpar e cuidar. Tantas vezes percebido como trabalho repetitivo, improdutivo, invisível, exaustivo.

Foi assim também que Silvia percebeu o trabalho doméstico e de cuidados, por décadas. Até se reconectar com memórias de infância, dos momentos em que ajudava a mãe no preparo de massas, molhos e licores, quando aconteceram conversas importantes que a fortaleceram por toda a vida e permitiram outra percepção: “(…) é pelas atividades cotidianas que produzimos nossa existência e podemos desenvolver nossa capacidade de cooperar, e não somente resistir à desumanização, como também aprender a reconstruir o mundo como um espaço de criação, criatividade e cuidado”. É isso mesmo. Lavar a privada poderia levar, então, a um caminho de transformação. À revolução, a partir do ponto zero.

Duas experiências alteraram a perspectiva teórica e política de Silvia, segundo ela mesma: estudar a história das mulheres na Europa durante a transição para o capitalismo, o que resultou no livro Calibán e a bruxa: mulheres, o corpo e acumulação primitiva, recentemente traduzido para a língua portuguesa, e ter sido professora visitante na University of Port Harcourt, na Nigéria, onde teve contato com modos de vida não capitalistas resistindo a intervenções do Banco Mundial e do FMI. “Revisitar o início do capitalismo também ampliou meu conceito de reprodução do trabalho doméstico para a agricultura de subsistência, ‘abrindo a porta’ da cozinha para o jardim e a terra.” O que leva a outra importante pergunta: quem produz sua comida? Atenção! A resposta, se passar por determinadas empresas de alimentos, pode ter relação com o golpe em curso no Brasil.

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