Bestiário pandêmico

Bestiário pandêmico
(Ilustrações: Wellcome Collection)
  O recém-lançado Pandora, de Ana Paula Pacheco, é possivelmente o livro mais estranho da história da literatura brasileira – e talvez, também, a melhor resposta ficcional ao mais estranho dos contextos. O romance envereda pelo fantasioso sem ser fantástico, pelo absurdo sem ser nonsense, colocando questões de fundo sobre a representação de situações traumáticas – e não apenas do trauma que o deflagra. Sua narradora e protagonista, Ana, é uma professora de literatura que relata experiências vividas em três relacionamentos, que aparecem fora da ordem cronológica em que ocorreram. O primeiro a ser contado é seu segundo casamento, mas não um matrimônio convencional, e sim com um pangolim – o que nos lança de imediato numa atmosfera de inverossimilhança que contrasta com o modo perfeitamente natural com que ela descreve seu cotidiano conjugal, incluindo relações sexuais, DRs e ressentimentos recíprocos, que culminarão na eliminação do animal. O segundo casamento é com uma mulher, já morta, que Ana conheceu numa Ocupação de sem-tetos no centro de São Paulo. O terceiro aparece na parte final do romance e retoma o registro fabular do início: seu marido, agora, é um morcego – enlace que implica conviver com uma coletividade de outros morcegos, dado o caráter gregário dos quirópteros. Como o leitor logo se dá conta, os parceiros animais de Ana correspondem às espécies apontadas como responsáveis pela disseminação inicial do vírus da Covid-19. E sua esposa humana, Alice, morreu da doença pouco depois de pôr em pr

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