Por uma Barbie em vermelho

Por uma Barbie em vermelho

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Me deslumbrei, me emocionei, chorei, me envergonhei. Efeito Hollywood. Mas esse sou eu. Somos nós. Efeito Hollywood. É assim que eu aprendi a pensar, a partir de imagens e de palavras, de perceptos e de afetos. Sem apatia.

Penso com o coração, com as lágrimas, com a dor provocada pela beleza intangível de Margot Robbie. Já foi Nicole, já foi Marylin. Penso no lugar vazio da perda da minha mãe, do meu pai, do primeiro amor, dos sonhos da infância, das ilusões da adolescência, das paixões tristes da vida adulta.

Penso que Barbie é um filme maravilhosamente estranho, unheimlich, como diriam os românticos da Alemanha antes da queda, como diria Freud. Tudo muito familiar, tudo muito bizarro. A quebra das fronteiras entre a Barbieland e a realidade representada é o de menos. O que perturba é a quebra das fronteiras entre o que se passa no filme e o nosso estilo de vida, nosso way of life.

Margot Robbie teve sucesso em nos deixar em vertigem sem precisar sair da tela, como fez Woody Allen com seu personagem Tom Baxter em A rosa púrpura do Cairo. Ela não está na tela, nunca esteve, quase posso tocá-la, acho que ela vai se apaixonar por mim. É o sorriso de minha mãe, o amor perdido da minha vida, a boneca adorada, a mulher que me completaria, a perfeita encarnação do inefável, tal como a vagina de Deus, como alucinou Pedro Pellegrino.

Afinal, “o que fazer com isso”? Onde se esconder, o que fazer com a dor de não poder mais brincar de boneca, qual a diferença entre uma mulher e uma boneca, qual a diferença entre um homem e um cavalo, para que servem mesmo o pênis e a vagina? Onde colocar as mãos, como mover os pés, o que fazer com o tesão que aperta meu peito?

Na história de “O homem da areia”, Hoffmann conta que Natanael se apaixonou por uma boneca que via pela janela, confundindo-a com uma mulher. Natanael se jogou do alto de uma torre e se espatifou no chão. Natanael quebrou a cara. Ken quebrou a cara? Eu quebrei a cara, meu filho Bernardo, meu filho Guilherme, ambos quebraram a cara. Você, leitor, leitora, leitore, vai quebrar a cara. Vai ter vergonha de ser homem, deveria ter vergonha de ser mulher, se percebesse que todos, o homem e a mulher e todes somos bonecos, bonecas, boneques que encenam um script que não foi escrito por nós mesmos.

A filha da puta da Margot Robbie nos escancara essa verdade constrangedora com aquele rosto de anjo caído. O filho da puta do Ryan Gosling nos apresenta um espelho que provoca uma careta de repulsa e nos faz desviar os olhos de vergonha. Então eu sou assim tão ridículo que preciso de uma Barbie loura e linda e cheirosa me incensando ao refletir a minha perfeição com a sua beleza maquiada?

Mas bonecas são de brincadeira, por que, em que momento eu levei a sério e fui procurar uma boneca para brincar de casinha com ela e ter filhos e ver televisão no sofá de couro acreditando que essa era a única brincadeira que me deixaria feliz?

Então eu sou assim tão ridícula que preciso de um Ken senhor de si e senhor de mim para eu poder brincar de casinha com papai sabe tudo sem precisar temer a inveja das amigas que sabem tão pouco quanto eu do poder que emana de entre as minhas pernas e sem precisar sair por aí como uma cadela no cio? Qual a diferença entre uma mulher e uma travesti, por que o pau da travesti seria menos viril que o do homem, por que eu me canso quando alguém me ama e desejo perdidamente quem eu não alcanço?

Estico a mão na direção da tela, mas não toco nos dentes brilhantes da Margot nem nos bíceps exuberantes do Ryan. Estico mais, só para esquecer de mim e fingir que sei quem eu sou. O cansaço de mim mesmo me envelhece, me entristece e, no entanto, não desisto da brincadeira de boneca, de ser a boneca da brincadeira. Não desisto de deixar brincarem comigo, me vestirem, me pentearem, me esticarem a cara e pintarem meus cabelos, mexerem meu corpo para cá e para lá, não desisto de ser um biruta a flanar por aí de acordo com os desejos de Hollywood, de acordo com a moda, não desisto de gostar de azul e de rosa nela, não desisto de fingir que sei alguma coisa sobre para que serve o pênis e para que serve a vagina e não desisto de querer ensinar para ela como é que se faz. Tudo é imitação, diria Gabriel Tarde.

William Pinto – é nome mesmo – me pergunta se existe a Barbie puta. Ele me faz rir. Ele é um filósofo, o maior deles. Barbie puta, Quase tão absurdo quanto a boceta de Deus inventada pelo Pedro. Mas se tem a Barbie médica, presidenta, mãe, arquiteta, modelo, por que não tem a Barbie puta? Se somos multiplicidade, e Margot Robbie é Barbie e Arlequina e loba de Wall Street e patinadora e malandra de New Orleans por que não tem Barbie puta, Barbie Carmem, Barbie Kátia Flávia, Barbie Joana D’Arc, Barbie traficante, Barbie miliciana, enfim, uma Barbie não em rosa, mas uma Barbie em vermelho, vermelho menstruação e vermelho loucura, uma Barbie criminosa, uma Barbie defunta?

Por que temos tanto medo da morte se não sabemos o que se passa, por onde e para onde passa, por que passa? A Barbie passou. Vestia rosa. Depois tailleur cinza. O Ken azul, depois short rosa com peixinhos azuis. Só a moda é soberana, só a imitação salva. Tudo é performatividade. A identidade nos melancoliza. Não sei se foi Judith Butler quem escreveu o roteiro, mas ela é foda. E a Karen Horney da Patrícia Amorim também. E a pergunta que não quer calar é: que pandemônio vai ser quando a Barbie, enfim, descobrir sua vagina?

Daniel Kupermann é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP.


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