A aventura do pensamento de Silvina Rodrigues Lopes e de Everardo Norões

A aventura do pensamento de Silvina Rodrigues Lopes e de Everardo Norões
(Fotos: Reprodução)

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Uma cultura imperialista expansionista se sente mais confortável quando é capaz de acreditar que as pessoas as quais ela explora são de algum modo menos humanas. Ao começar a receber noções de que estas pessoas têm todas as características humanas, como nós, tudo já não será tão fácil.”
Gary Snyder,
trecho de conferência na Universidade de Wisconsin,
abril de 1975

1.

Repare-se o jogo de nomes e de pensamento: Raúl Antelo lembra – tocando o instante em que Francisco Goya plagia antecipadamente a Georges Didi-Huberman – que o filósofo Giorgio Agamben, relendo Gilles Deleuze, anota que o evento não é o que acontece. E diz, expandindo todo o sentido do jogo,

que o fato de chover é algo que acontece, claro, mas isso não basta para fazer disso um evento: para que haja um evento é necessário que, além de acontecer, eu sinta esse acontecimento como um acontecer para mim. O aventureiro, poderíamos assim dizer com Agamben, ao encontrar a aventura, encontra também a si mesmo e o seu ser mais profundo torna-se, em e pela aventura, estilhaçado por todos os lados. A aventura nos coloca, enfim, uma tarefa. Para conhecer é preciso aventurar-se.

De um lado, a moral do brinquedo de Charles Baudelaire, tão cara a Walter Benjamin; do outro, a arché da teoria dos jogos de Roger Caillois. E não é pouco pensar, como Herberto Helder, que Rimbaud é um discípulo antecipado de Godard; ou que Góngora, também antecipadamente, não passa de um plagiador de Mallarmé. É na aventura que se pode, de algum modo, ao tocar um si mesmo sem centro, provocar uma explosão ao diferimento dos extremos, do infinito, com o pensamento, para o pensamento, até onde o pensamento ainda não pode ser pensado etc. A aventura é, radicalmente, uma vagabundagem, como aquela professada por Jack London: a de adormecer sobre os trilhos, uma coragem, um enfrentamento às fixações perversas do capital.

A moldura disso está na insensatez daquilo que, por exemplo, se demora entre o que se pode ler como cultura e, ao mesmo tempo, sem a política, como o imperialismo da cultura. É este último que se atravessa com uma questão básica: o que a civilização ocidental, modelo único e violento, industrial e tecnológico, está fazendo com a terra. O poeta beat, zen, estudioso seminal, Gary Snyder, já anotara nos idos dos anos 1950 que Platão, reconfigurando algumas tragédias, indica categórico o quanto o Estado é a maior encenação trágica de todas. E isso, entre o moderno e agora, entre o dinheiro e a miséria, é o que se apresenta numa estrutura laceradora de classes: a acumulação de riquezas.

Assim, num passeio breve a qualquer livraria de qualquer lugar desse país, folheando as primeiras páginas da maioria dos livros expostos logo à entrada ou suspensos em mostruários, o que se tem – grosso modo – é a reencenação da tragédia desenhada por Platão e reconfigurada por Gary Snyder: e sem aventura alguma. Ou seja, nenhum risco, nenhum estranhamento, nenhum desejo.

Giorgio Agamben, na tradução de Davi Pessoa, no texto citado por Raúl Antelo, A aventura, diz: “quanto mais estranha e mais arriscada é a aventura, mais ela é desejável”, “a aventura não se situa apenas em um texto nem apenas em uma série de eventos, mas no seu coincidir, isto é, cair junto”. E aí, lê-se, Demônio, Eros, Evento, Elpis, “como se o amor fosse mais forte que a aventura […]. Como se o amor fosse tanto mais ardente e impregnado de nostalgia quanto mais forte se revela nele a incapacidade de amar”, ou como combater o genocídio cultural imposto por uma mímica e profícua banalidade, como ser aliados das lutas sociais em toda parte, como provocar uma literatura que nem passe perto da ideia de literatura quando “o escuro é ainda mais escuro, o frio mais frio” ou “mudar para um lugar livre de destruição, um lugar que desmente a destruição”.

2.

Há algum tempo que tanto Silvina Rodrigues Lopes (portuguesa, professora da Universidade Nova de Lisboa, crítica, escritora, tradutora, editora da Vendaval etc.) quanto Everardo Norões (escritor nascido no Crato, exilado político durante a ditadura militar, tradutor, poeta, finalista e ganhador de prêmios, mesmo com a palavra ao contrário) projetam a cada texto e livro que imaginam um desamparo da literatura entre despossessão e poeira, anomalia e moscas, atrito e onde não somos etc.

Muito tranquilo e claramente, entre tantos “melhores livros de 2022”, essas listas que embelezam cada vez mais apenas os catálogos das grandes editoras movidas à madeira e óleo e sem freio de emergência, pode-se ver, de fato, parafraseando Nicanor Parra, que os 4 melhores livros de 2022 são 3: Inconjuntos (Livros Vendaval) e Garrafas que sonham macacos (CEPE).

O primeiro é a composição díspar de uma seriação de textos entre o relato, o ensaio e a conversa numa espécie de “era assim a vida das pessoas”, sem orelha, sem biografia, sem prefácio ou posfácio e quando todas as marcas são desidentitárias, como sugerira Walter Benjamin. O segundo é uma sucessão de narrativas terrivelmente inventivas, quase simultâneas, como a vida, “este imenso rio cor de pus”, com narradores e personagens descabidos que atravessam algumas cidades mundo afora, sem saber muito bem o que se passa nelas ou o que se passava antes de chegarem ou depois de partir de cada uma delas. Tudo é simplesmente flagelo social, figuras quase sempre concentradas em detalhes que as faz escapar de sobreviver.

Este Inconjuntos, de Silvina Rodrigues Lopes, tem a ver exatamente com muito ou quase muito de tudo ou quase tudo do que ela professa (e é este o termo exato e inexato, equívoco e inequívoco que melhor alarga a leitura desse livro) há bastante tempo em vários de seus textos, conferências, aulas. Há neles uma ausência de silêncio, tudo é tagarelice – “A humanidade é muda, só as pessoas falam e só elas têm problemas.” – e a dilação constitutiva do quanto e quando um encontro ao acaso, esbarrar-se, pode cumprir como perturbação da rotina, esta mola mestra do desastre.

Há coisas como o medo, numa projeção do melhor cinema de Kafka, ou coisas como o naufrágio, uma reiterada imagem enviesada de Jonas, Pequod ou Margo Glantz: “Ainda não sabia que, na ânsia de se salvarem, os náufragos se tornam perigosos” e “A saída da devastação do mundo não pode estar naquilo que o fecha, que o concebe como um todo. O seu fechamento é a sua devastação – é o não se crer nele como possibilidade de viver juntos sem privilégios nem servidões”.

Basta uma pequena volta ao redor do que Silvina escreve no pequeníssimo e singular A estranheza em comum, publicado no Brasil em 2013, pela Lumme Editor, ao apontar e presumir uma ideia do mundo-em-comum como intotalizável, para que se perceba a força de seus narradores, personagens e conversadores soltos pelas páginas consequentes de Inconjuntos para cortar ao meio a ação civilizatória que gira basicamente em torno do dinheiro: a da monocultura.

Ela escreve que viver é uma afirmação incerta porque ninguém vive para viver, mas vive-com, sobre-vive. E que por isso a literatura não tem nada a comunicar, a formar ou a educar. A literatura não é uma contribuição a um bem comum, patrimônio comum, mas é um modo de existência, uma singularidade de existir, contra a falta de imaginação do mundo como fechado e finito ao sucesso do dinheiro. É porque a literatura não-se-destina que decorrem, diz ela, as implicações éticas e políticas da poesia, por exemplo. Daí, numa extensão do sentido, é da sua estranheza, de uma ex-timidade, e não da banalidade naturalizada e naturalizadora da construção de uma intimidade identitária que diga respeito apenas e somente a um EU entremunhado à mesmice e sem nenhuma violação.

O gesto de Everardo Norões, por sua vez, no Garrafas que sonham macacos, tem a ver com a crise dessa mesma e única ideia de civilização, mas agora em expansão: narradores e personagens entremeados e assombrados por lugares díspares e, ao mesmo tempo, quase similares, quando a vida já aparece e parece completamente dominada por uma ausência de fadiga ou dor. O que Gary Snyder aponta como culturas ou sociedades que avançam com a violência e o descontrole de seus suportes econômicos até o limite de arruinarem um ecossistema e, mesmo assim, continuar em marcha.

E se o que sobra é alguma lembrança – “A única forma de gratidão é a lembrança! Mas para haver lembrança é preciso haver consentimento.” –, percebe-se a cada narrativa, ou conto, se há ainda esta gerência do termo, a anotação como esforço e sensibilidade para tocar a causa do outro, de alguma outridade: “O objetivo deles é liquidar os que podem ser semente, poupar os que negociam. No fundo, nossa volta será uma tragicomédia”.

Os livros anteriores de Everardo Norões, Entre moscas (pequenas narrativas, Confraria do Vento, 2013) ou Poeiras na réstia (poemas, 7Letras, 2010), por exemplo, já modulam os sentidos do que a sua escrita absorve e penetra agora abrindo a perspectiva da linha, do relato, do narrar, até os jogos impossíveis e impensados da simultaneidade. Isto é, num mesmo movimento, uma dança ou uma espiral, de experiências entre o corpo e a biblioteca, entre o deslocamento do olho e, sem perder o senso de revés, o deslocamento da mão; quando a dança, tal como sugere Drummond, também não é movimento.

Everardo é de uma erudição rara naquilo que se imagina como “literatura brasileira” nos tempos ao nosso redor, todo o seu trabalho é um esforço e uma força para abrir pontos de incisão, furos, nas imagens dos dias. É uma aventura. E ao ler o que ele escreve, tentando imaginar como leitor, é importante cumprir esse mesmo simulacro imperdoável que dispõe entre o homem e a linguagem: Ereignis. Uma ontologia, o que nomeia o ser enquanto advém, sem abjurar, quando a linguagem diz e revela o ser. Um limiar que, segundo Agamben, se lê como uma ultrapassagem: a aventura das aventuras.

Sem saídas, de ponta a ponta, de começo a começo, e sem termo, Inconjuntos e Garrafas que sonham macacos são livros que, no mínimo, exigem a musculatura de quem se lança ao mundo com o descabimento do jogo de que o evento não é o que acontece. O que há de áspero é também o que se apresenta como felicidade, um arremesso, um desperdício, até porque o desenho concreto que trazem é o de que a vida humana não é uma aventura, mas sim uma comédia.

Manoel Ricardo de Lima é professor de literatura na UNIRIO. Publicou, entre outros, A guerra da água (7Letras, 2022), Xenofonte (Cultura e Barbárie, 2021) e O método da exaustão (Garupa, 2020). Bolsista produtividade CNPq.


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