As violências que me atravessaram junto com aquela bala

As violências que me atravessaram junto com aquela bala
Mães e familiares de jovens negros mortos por policiais protestam contra a violência, no Rio (Fernando Frazão/Agência Brasil)

 

Por Raony Lima

Logo após a morte por atropelamento de uma jovem menina, que não devia ter mais que 10 anos de idade, a comunidade do Alto do Bigode decide descer o morro e parar o movimento dos carros naquela rodovia que vinha tirando a vida de muitos conhecidos de todos ali.

Na Vila Torres Galvão, a PE-15 liga o município de Olinda ao de Abreu e Lima, desembocando na rodovia federal mais famosa: a BR101. Muitas pessoas passam por aquela rodovia e muitos carros passaram por cima das pessoas daquela comunidade.

Como comunidade, resolvemos protestar mais uma vez, mesmo cansadas, pois nas últimas semanas já tínhamos pedido ajuda ao estado. Ainda sem ser ouvida, a comunidade decide gritar mais alto e, para isso, acende pneus e queima sofás na rodovia mais importante da cidade no horário que ela sabe que todo o grande Recife vai parar com aquele ato. A comunidade responde com alguma violência; a violência que vem sofrendo há dias, do estado. Respondemos com o que tinha disponível para proteger uns aos outros; nossa violência que era um grito de socorro contra a violência deles que nos silenciavam. Mas um policial, força do estado, responde com um grito ainda maior, e este grito que tem um tamanho pequeno como aquele policial, tem uma força muito grande e atravessa a minha perna deixando a violência como marca, em mim.

Minha mãe foi a grande culpada, aliás foi ela que me deixou  sair de casa naquele fim de tarde. O policial, que na verdade apontou a arma para um menor negro da comunidade e atirou nele, estava “apenas querendo ir pra casa”.

A marca da bala que atravessou a minha perna é a menor das marcas deixadas por esta violência. Ela revela não só como a violência policial emudece nossa comunidade, mas como ela também está ligada a outros meios de opressão. Neste caso é muito visível a marca do machismo que recai sobre a minha mãe.

A violência policial que começou com aquele disparo que acertou minha perna continua ressoando até hoje em mim, na minha família e na comunidade. Este ressoar que ainda escuto (o disparo foi feito há 15 anos), traz nele a revelação de como o estado usa da força policial para não responder a nossa demanda.

Para nos silenciar e nos mostrar que a pobreza é nosso crime, sinto como se o estado (mesmo sem ter pedido ao policial que atirou naquele jovem negro) o tenha agradecido. Nenhum policial veio nos procurar e até agora o silêncio continua operando na minha mãe.

 

Raony Lima, 30, é designer digital numa empresa de tecnologia. Mora em São Paulo há cinco anos, mas sua família continua em Pernambuco, onde aconteceu a história

 

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