As nádegas do senador e a purgação moral do país

As nádegas do senador e a purgação moral do país
O presidente Jair Bolsonaro e o senador Chico Rodrigues, que escondeu mais de 30 mil reais na cueca (Foto: Divulgação)

 

Dos mesmos roteiristas de Black Mirror, estreia esta semana em um país perto de você, Brasil, ou De Como uma Nação Indignada Evoluiu Trocando Gente Que Escondia Dinheiro No Saco por Gente Que Escondia Dinheiro no Meio das Nádegas. 

Não se assustem com a escatologia política brasileira. Eu explico. Tudo resultou de uma operação da Polícia Federal e da CGU, esta semana, que tinha o objetivo de apurar desvio de recursos públicos provenientes de emendas parlamentares. E assim o dinheiro vivo foi apreendido na cueca de um senador do Dem de Roraima, vice-líder do governo Bolsonaro no Senado, sujeito próximo ao presidente que, segundo as palavras do mandatário e registradas em vídeo, praticamente tem com ele uma “união estável”. Havia dinheiro escondido “entre as nádegas” do ilustre senador, segundo o relato da revista Crusoé, confirmado pelo jornal Folha de S.Paulo. 

Dinheiro apreendido de gente da política em situações peculiares não é novidade. Temos os 100 mil dólares na cueca de um assessor parlamentar do ex-líder do PT, deputado José Guimarães, em 2005. Temos o dinheiro nas meias do deputado distrital do Dem de Brasília, Leonardo Prudente, em 2006.  Em 2017 temos a mala de dinheiro nas mãos do deputado Rocha Loures, destinada a Temer, em disparada pelos Jardins, em São Paulo, com 500 mil reais de propinas da J&F. E temos, por fim, no mesmo ano, as malas com o equivalente a 51 milhões de reais do deputado baiano Geddel Vieira Lima, também ele do MDB de Temer.

Completada a reminiscência, voltemos ao presente. O fato é que faz anos que os brasileiros fazem o papel de otários ultrajados. “Ultrajados” uma vez que são movidos por forte indignação moral ante a exibição de quantidades indecentes de dinheiros estocados de forma igualmente indecente, quando resolvem punir o sistema político. “Otários” porque, invariavelmente, resolvem punir os corruptos apoiando pessoas ainda mais corruptas. E a história poder-se-ia resumir assim:  

“No princípio era o dinheiro na cueca. Escandalizado, o brasileiro resolveu pôr um fim a esse estado de coisas. Aí vieram as malas de dinheiro. Ultrajado, o brasileiro resolveu dobrar a aposta na purificação do sistema político. Foi então que o dinheiro começou a aparecer na bunda.”

O PT pagou caro pelo recall dos dólares na cueca, uma história de 15 anos que definitivamente contribuiu para que o rótulo “corrupto” se transformasse em uma das primeiras coisas que a maioria das pessoas lembra quando pensa no partido. As malas de Temer, Rocha Loures e Geddel, por sua vez, são uma marca indelével da lembrança do MDB e a metonímia mais significativa da Era Temer, que surgiu justamente para purgar o país da assim chamada “corrupção do PT”. 

 

A ascensão de Bolsonaro ao
poder foi a mais recente
escalada purgatória deste
país, e a sua aposta mais
alta e mais radical.

 

 

Por muito tempo, Bolsonaro foi apresentado como o homem de uma única qualidade, a de não ser corrupto, de não se envolver com corrupção, de não se beneficiar dela. Ainda hoje, os papagaios do bolsonarismo repetem obsessivamente e em voz monocórdia “não tem corrupção”. 

E tanto se esforçam para nos convencer disso, que as apostas vão subindo a um nível muito arriscado. Na semana passada, o próprio presidente pagou para ver, declarando que havia acabado com a Operação Lava Jato – o amuleto e fetiche da seita dos ultrajados com a corrupção – simplesmente porque no seu governo ela não se fazia mais necessária, posto que a corrupção não existe mais. Um silogismo, sim, e uma frase espirituosa, também. Mas que supõe uma fé bovina da sua audiência e uma crença difícil de ser compartilhada por uma população acostumada a duvidar da honestidade de governos e políticos.  

Em contraste com a declaração oficial do fim da corrupção no Brasil, acumulam-se os fatos. A este ponto, dois terços da família Bolsonaro já apareceram no noticiário relacionados a dinheiros de origem duvidosa e de comportamento suspeito (como no caso da fantástica loja de chocolates). Uma família que, curiosamente, ignora instituições bancárias e cujo dinheiro anda de mãos em mãos, em pacotes de centenas de milhares, a comprar bens imóveis que se acumulam ao longo dos anos e em quantidade impressionante para pessoas que nunca tiveram outras atividades na vida, além do emprego como políticos profissionais. As palavras rachadinha, lavagem de dinheiro, desvio ou uso indevido de dinheiro público definitivamente estão associadas aos Bolsonaros. Falta só quem consiga ligar os pontos entre todos esses crimes e traduzi-los na simples expressão que dá conta de tudo, sem tirar nem pôr: corrupção.

Por isso, mesmo que por associação, o dinheiro que aparece na bunda do vice-líder do governo vai ajudando a memória social a fazer as contas. O senador Chico Rodrigues, segundo o Congresso em Foco, provou-se fiel ao presidente da República em nada menos que 97% das votações nominais em plenário. No seu gabinete está empregado Leo Índio, o primo de Carlos Bolsonaro de quem se falou muito nos últimos tempos, e que, segundo a Crusoé, recebeu como salário a bagatela de 436 mil reais do senado em um ano e meio. Além disso, Chico Rodrigues, embora represente o minúsculo estado de Roraima, é o oitavo senador com mais emendas parlamentares liberadas por Bolsonaro, num total de 16,6 milhões de reais, segundo a BBC News Brasil. Não é, pois, um assessor parlamentar, não é um agregado de última hora do Centrão, não pode ser descartado como se não tivesse uma “relação estável” com o presidente. 

É assim que as imagens públicas vão sendo formadas. Por associação e de pouquinho em pouquinho, rachadinhas e dinheiro vivo que caprichosamente se esconde em cuecas e brotam de lojas de chocolates vão moldando uma imagem feia de um governo que já é feio por muitas razões. 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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