A árvore que sobreviveu ao Saara, mas não a um caminhoneiro bêbado

A árvore que sobreviveu ao Saara, mas não a um caminhoneiro bêbado
Foto: Bonnie Kittle/Unsplash

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”. 


No meio do deserto do Saara, tem uma única árvore que cresceu e ninguém sabe como. Sua existência é tão impossível que consta em todos os mapas do mundo. É urgente provar que ela existe. É necessário sempre lembrar que no meio do chão seco e do calor e das milhões de dunas em que não pode crescer coisa alguma, cresceu uma árvore. Em 1973, um caminhoneiro bêbado atropelou a única árvore que crescia no meio do deserto do Saara e isso é absurdo porque sua presença estava marcada em todos os mapas do mundo e ele tinha o deserto inteiro para conseguir desviar. Os restos da árvore foram para um museu, os do caminhão, pro lixo. No lugar onde antes crescia a única árvore do deserto do Saara, fez-se um monumento. O caminhoneiro foi preso por um crime contra a humanidade e cumpre sua pena numa cela sozinho, porque todos os outros presidiários da Nigéria sentem nojo dele. 

Faz três semanas que moro em uma casa vazia e percebo que esqueci o som da minha voz. Subo e desço as escadas várias vezes ao longo do dia. Passo mais cafés do que tenho vontade de tomar. Ponho a mesa para muitas pessoas em todas as refeições. Tento manter as coisas em ordem mas não consigo lavar a louça. Acompanho o número de mortes em meu país, que cresce todos os dias sem que se faça um monumento. Penso, sobretudo, na única árvore que cresceu no meio do deserto do Saara e que foi atropelada por um caminhoneiro bêbado que, não é possível que não tenha conseguido desviar, só pode ter feito isso por vingança ou inveja. Eu sinto inveja da árvore, porque a única coisa que ela fez pra ter sua presença marcada por todos os mapas do mundo foi, simplesmente, existir. Eu existo nessa casa vazia, mas muitas vezes me esqueço e, se eu mesma esqueço de mim, quem é que vai lembrar? Tenho certeza que minha casa não consta em mapa algum e que, se um caminhoneiro bêbado atravessasse as paredes da minha sala e me atropelasse no meio da minha cozinha, nem mesmo sairia no jornal. 

Mas a louça suja talvez fosse para um museu. Faço dos meus restos um monumento da minha solidão para que não me joguem no lixo.

Clara Prado, 18, mora em São Paulo. É estudante de filosofia, mas que escrever um único livro na vida e nunca mais falar nada. Enquanto não consegue achar essas palavras, lava a louça e tenta não dar forma a sua solidão.

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