Antes e depois

Antes e depois
(Arte Revista CULT)

 

Por Dora Vergueiro

Antes de tudo, o sonho.

Os vestidos cobrindo a barriga de travesseiro, e o olhar no espelho fantasiando o orgulho que seria carregar outra pessoa dentro de mim.

Antes de planejar a vida, antes de estar preparada… antes…

Aquele desejo de menina que me habitava nos pequenos detalhes se concretizou atropelando o bom senso, e as consequências… tudo o que viesse, todo preço que fosse alto seria menor que a minha maior ambição como mulher.

E como quem dorme o sono dos ignorantes, inconsequentemente, dropei a maior de todas as ondas até ali.

Como se fosse a primavera, como se fosse a capa da revista exibindo meu barrigão na praia, como se fosse aula de ioga pra gestantes e hidroginástica na academia da praia.

As cores do quarto de bebê, a importância que eu me dava… o primeiro “feliz dia das mães” com ela ainda na barriga.

Sou mãe! Que incrível!

E quando a minha avó me disse: “Você vai ver só onde está se metendo… ” , apenas ri, sem levar tanta fé.

E durante os nove meses o medo de não voltar pro meu corpo não me pegou.

Saí da maternidade com a minha calça jeans 36.

Só que eu não era mais o mesmo corpo dentro daquele manequim.

No exato momento que ouvi minha filha chorar, eu nasci de novo, mudei de status… eu perdi um pouco do direito de ser filha, eu fui forçada a ser por ela antes de ser por mim.

A fome dela, o choro dela, o sono dela e não o meu…

E doeu… e cansou, e me bagunçou!

Ao mesmo tempo um gigante sentimento indescritível alimentava minha alma! Era uma paixão que me fazia sair do trabalho correndo e subir as escadas à galope, largando chave e bolsa pelo caminho pra segurar minha neném no colo e amamentar. Chegava a me deixar sem ar.

Aquela urgência! Aquele peito rasgado pela distância quando era imposta.

Aquele medo repentino de avião aliado à certeza de que é proibido morrer.

O melhor e o pior de mim, misturados com uma vontade imensa de acertar, vinham me ensinando, dia após dia, a olhar o mundo com olhos de quem tem a responsabilidade de fazer alguém feliz.

Alguém que corre nas suas veias, que te faz respirar, que pode fazer seu coração parar a qualquer momento.

E como desvincular essa dependência quase química do ideal de respeitar as liberdades e escolhas do outro?

Como outro? Ela sou eu! Ela é minha! Ela é meu tudo!

Sim ela é outra… ela é do mundo, ela corre riscos, ela sente amor e ódio, ela tem ideias, ela é capaz de me julgar e de não querer meu colo algumas vezes.

Uma tarde, ela, tão ela, tão diferente de mim, tão dona do seu jeitinho doce, me olhou no olho e me fez um pedido com a voz de quem não me daria opção de negativa…

Mamãe, eu quero uma irmã!

Tinha oito anos.

Eu jamais negaria um pedido desses feito naquele tom.

Neguei bonecas fora de hora, neguei chocolate em excesso, neguei o direito de andar sem levar um casaco caso esfriasse, mas a experiência de ter um irmão? Senti que não tinha o direito de negar. Mesmo sendo loucura, mesmo sabendo tudo o que não sabia antes…

E começar de novo… com toda a dor e a delícia.

Era grande, quase um precipício, era a escolha de renunciar à liberdade que tinha começado a voltar para as minhas mãos depois de longos invernos e longos verões.

Filho pequeno prende… aquelas máximas verdades que a gente reconhece no meio do caminho e acaba se curvando a elas. Como São Tomé, que vê pra crer.

E esse segundo mergulho foi com a consciência assustadora de quem já atravessou desertos e enfrentou tempestades.

A coragem pra chegar do outro lado tinha raiz na prova de amor… por que não?

Tem mãe que trabalha de sol a sol pra dar a chance que não teve ao filho.

Tem mãe que dá um rim, tem as que abandonam no lixo, tem as que dão pra adoção por admitir impotência , tem as que as desistem mesmo estando presentes, tem as que criam o filho de outras.

Tem tudo!

E ali, eu daria tudo ou nada naquela resposta.

Sim ou não…

Meu sim veio com direito a 11 semanas de repouso e oito meses de espera. Veio pra me frear e pra me ensinar a domar meus leões, meus dragões, e trabalhar a humildade de aceitar que o mundo lá fora ia seguir, e eu aqui dentro, ia assistir.

Saí de cena pra gerar Maria, deixei Catarina brincar de cuidar de mim .

E nos copos d’água que trazia, ou na mão que estendia me ajudando a levantar do sofá, eu via ela já gostando de ser capaz de tomar à frente de uma situação!

Dentro de casa, dentro de mim, dentro do mesmo objetivo , ficamos nós três conectadas.

Soma e divisão. O amor não se misturou nem se dividiu. Erros, acertos e julgamentos se alternaram à minha volta.

A missão de zelar por um recém nascido simultânea a de educar uma criança.

Nas manhãs em que acordei com vontade de ser eu, sem nada mais, fingi ser possível e, por algumas horas, vivi.

Bastam algumas horas por dia pra gravar uma música, sonhar acordada, tomar um vento na cara ou correr por aí…

Logo a gente volta pro ninho no piloto automático com o porta-malas cheio de comida pra estocar na dispensa… e se chover? E se alagar? E se o bloco de carnaval fechar a rua? E se…

Maior armadilha das mães… e se… ?

E se elas se machucarem?

A gente vai estancar o sangue das nossas feridas e cuidar da delas como se as nossas não estivessem lá…

E dentro desse pacote vai ter também o momento de deixar o pranto rolar e admitir que somos humanas, que homem também chora.

E vai ter a noite de pedir desculpas, o tapa que escapou, a gota d’água que explodiu o grito, o remorso e a dúvida de qual caminho seguir.

Enquanto uma se alfabetizou outra fez um ano de namoro.

E essa aventura cheia de surpresas dá o norte e o sentido pra vida.

A vida de quem escolhe ser mãe…

É pra sempre!

E é incondicionalmente imperdível!

Dora Vergueiro, 42, é cantora e compositora no Rio de Janeiro; mãe de Catarina, 16, e Maria, 7

 

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