Angústia: onde dói?

Angústia: onde dói?

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2021 é “angústia”


 

Mulher, 40 anos, após a notícia da morte por enfarto de alguém a ela, inclusive desconhecido, passa a ter os sintomas físicos que resultaram no óbito da pessoa referida. É submetida a vários exames, todos comprovando ausência de lesões orgânicas. Dorme mal e diariamente ao acordar pensa: “vai começar tudo de novo”.

Homem, 42 anos, com câncer de estômago, diz não sentir medo da dor.  O que o angustia é ficar moribundo diante do olhar do outro.

Menina, 5 anos, após a explicação do porque não pode ir à escola pelo Covid, recusa-se a sair de casa. De alegre e extrovertida passa a triste e solitária. Quando convidada a descer ao playground diz “não”, alega dor de cabeça e se fecha no quarto.

Amplo é o campo onde se trabalha e se estuda a dor e a angústia.

Em um bilhete, encontrado no bolso de um suicida, constava a seguinte mensagem: “Foi uma dor-de-dente, nada mais que isso”.

Dor é definida pela Filosofia como “signo ou indicação do caráter hostil ou desfavorável da situação em que se encontra o ser vivo”.

Pela Medicina como “impressão penosa experimentada por um órgão ou parte e transmitida ao cérebro pelos nervos sensitivos”.

Pintores como Goya, Francis Bacon, tentaram capturar, em suas telas, os momentos expressivos da dor e da angústia.

Fernando Pessoa fala do poeta que “finge a dor que deveras sente”.

Segundo Platão, “a dor ocorre quando a proporção ou a harmonia dos elementos que compõem o ser vivo é ameaçada ou comprometida”.

Não se pode falar de angústia, sem falar de dor e perda.

Que sofrimento faz o sujeito despertar com a frase “vai começar tudo de novo”? A que começo se refere?

No livro de Teixeira Coelho, Fúrias da Mente, o personagem diz que “saber que vai passar por algo desagradável, já é passar por algo desagradável, portanto, há uma condenação a sofrer duas vezes o mesmo martírio, sofrê-lo duas vezes com a mesma intensidade”.

Um responde com o corpo, e fala de uma dor que se fixa ou “se apoia” como diz Freud, que se modifica e que ninguém a sabe diagnosticar. Indiferenciada, porta a angustia.

Outro responde com o ritual, cercando o limite do corpo com detalhes de perfeição. A assepsia em gestos e palavras, a negação da possibilidade da falta o coloca no limiar de uma outra dor: a da perda da limpeza e o equilíbrio, ocasionando a angústia.

Citando, mais uma vez, o livro Fúrias da Mente, há uma passagem em que o narrador se refere ao seu sofrimento, de que “está autorizado, talvez, a sentir emoções. Não a manifestá-las”.

No texto Introdução ao Narcisismo, Freud fala sobre a dor do hipocondríaco e do doente orgânico. Ambos retiram sua libido do mundo exterior e a voltam sobre si mesmos. A diferença, no caso do hipocondríaco, é que a doença não fica comprovada, mas exerce a mesma influência que a enfermidade material dos órgãos.

No instante em que uma angústia se instala, nada há de interesse no mundo externo que não seja dentro dessa relação.

A angústia faz parte desde sempre da vida do homem. Dor é caminho de mão dupla. Goza-se e sofre-se. Sofre-se e goza-se. Mas, se há um componente de gozo, do ganho dito secundário, há também a possibilidade da angústia, o temor desse desconhecido que não se delimita o caminho, e remete ao possível da morte. O encontro, sempre tentado adiar, com a castração. Eros e Tânatos se manifestando através da dor.

A pandemia expôs, em modo quase caricatural, a angústia: com a limitação da liberdade, com a máscara como proteção, a mortalidade foi denunciada democraticamente.

“Caio é um homem, os homens são mortais, logo Caio é mortal”, parecera-lhe a vida toda muito lógico e natural se aplicado a Caio, mas certamente não quando aplicado a ele próprio. (Lev Tolstói, A morte de Ivan Ilyich)

Segundo Heidegger, na angústia o Homem sente-se em presença do nada, da impossibilidade possível da sua existência, isto é, a ameaça de morte.

A psicanálise oportuniza que uma simbolização seja feita, e o sujeito angustiado possa saber por que isso lhe acontece.

No Canto V do Inferno, Dante encontra com Francesca de Rimini, em meio aos castigos físicos que ela sofria. Ela lhe diz “não há dor maior que recordar em plena desventura os momentos felizes”.

Revela ao poeta a sua “outra” dor maior, a dor da sua história e da sua condenação, e da angústia sempre recomeçada na punição sem fim.

Ao escutá-la o poeta cai “como um corpo morto cai”.

 

Leda Rezende é brasileira, médica
psicanalista e escritora. Reside em Milão.

 

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