Ana Maria Gonçalves: ‘Nossas vozes e nossas ideias são pó de ouro’

Ana Maria Gonçalves: ‘Nossas vozes e nossas ideias são pó de ouro’
A escritora Ana Maria Gonçalves (Foto Leo Pinheiro / Divulgação)

 

No final dos anos 1970, uma professora de pré-escola da cidade de Ibiá, interior de Minas Gerais, pediu que as crianças copiassem frases nos cadernos de caligrafia. Conforme o esperado, “Vovó viu a uva” e jargões correlatos se multiplicaram pelos cadernos. Mas em um deles estava copiada a carta-testamento de Getúlio Vargas. A professora chamou a menina e perguntou se ela sabia o que tinha escrito. Ana Maria Gonçalves, aos seis anos de idade, respondeu que adorava aquela carta.

A escritora de 47 anos, que hoje lê cerca de cinco livros por semana, sempre foi voraz. Jornais, revistas, ficção, história, devorava o que era permitido a ela, mas também os livros que a mãe reservava nas prateleiras mais altas da estante. Já adulta, perto dos 30, sentiu aquilo que Grada Kilomba chamou “fome coletiva por nossas vozes, escrita e recuperação de nossa história escondida”. Para se saciar, trabalhou durante cinco anos em Um defeito de cor, lançado em 2006 pela editora Record, já na 15ª edição.

O livro conta a história de Kehinde, capturada no Daomé, Benin, aos oito anos de idade, trazida ao Brasil onde foi batizada Luiza; sua jornada de escravidão e liberdade vivida na Bahia, Maranhão, Rio de Janeiro, Santos, São Paulo, o retorno à África, a tentativa de voltar ao Brasil. Oitenta e nove anos de uma mulher negra do século 19, em sua complexidade, amores, amigos, filhos, política, trabalho, inteligência, estratégia, resiliência. A história não contada deste país. Graças a dois anos de pesquisa rigorosa, um ano de escrita e mais dois anos de reescrita, até chegar às 952 páginas finais.

Recebeu o Prêmio Casa de Las Américas em 2007, foi considerado o livro mais importante da literatura brasileira do século 21 por Millôr Fernandes e muitos que o citaram nessa afirmação. É um dos mais vendidos: aproximadamente 16 mil cópias. Como voltar a publicar depois de tamanho estrondo? Esta pergunta norteou a entrevista a seguir, feita com Ana Maria Gonçalves em um encontro de cerca de duas horas no Espaço Cult, em São Paulo, uma semana e meia depois de termos conversado na Tarrafa Literária, em Santos. Além da interlocução pública durante o debate que mediei entre Ana e Conceição Evaristo, pudemos experimentar uma troca mais solta durante o jantar e ao voltarmos juntas para São Paulo. Entrevista feita por uma leitora e admiradora que já compartilhou com a entrevistada a mesa de bar, portanto. Achei melhor avisar.

Logo depois do lançamento de Um defeito de cor você foi para os Estados Unidos, onde viveu por oito anos. Como foi isso?

Ana Maria Gonçalves Eu não tinha essa noção de ser conhecida, principalmente em Salvador. Óbvio que eu acompanhava e sabia que o livro tinha sido bem recebido. As pessoas cobravam muito: quando sai outro? Queriam uma continuação de Um defeito de cor, esperando de mim algo que tivesse aquele peso, aquele assunto. Tinha a minha expectativa também. Como supero? Como avanço? Até eu entender… Foram sete anos sem eu conseguir terminar nada. Eu tenho vários livros começados, em vários estágios, alguns só roteiro, outros com 200 páginas, mas eu nunca consegui terminar nada. Chegava um momento em que me perguntava: que merda é essa? Não é isso, não está bom. Até entender que a literatura não é uma área que implica evolução. Tanto que você pode escrever um bom livro e depois outro que é nada e depois voltar a escrever outro bom. Pensar que muitos escritores hoje consagrados às vezes têm como melhores as primeiras obras. Ou seja, não necessariamente a literatura é algo que evolui. Entender isso, primeiro, foi um passo importante para destravar. Um amigo meu que é professor de literatura, crítico literário e babalorixá me falou outra coisa muito importante: “Você tem que entender que um portal se abriu, que te permitiu escrever Um defeito de cor, depois disso ele se fechou e não vai se abrir mais. Esquece Um defeito de cor. Vai procurar outras coisas, outros caminhos.” Eu só consegui terminar outro livro agora, depois que parti para algo que não vai permitir comparações, pelo menos para mim, no processo de escrita, não permitiu comparações.

Sobre o que é o livro?

É um policial, ficção científica. São personagens adolescentes. Jogo em um outro extremo. Depois de um histórico que precisou de pesquisa rigorosa, joguei a narrativa para o futuro, qualquer coisa é possível. O que me limita não é o que existe, mas a minha capacidade de imaginar o que pode vir a existir. Essa diferença foi muito importante. Ele se chama Quem é Josenildo? É a história de um garoto de mais ou menos 13 anos, negro. Único aluno negro da classe dele, de um colégio tradicional de São Paulo. A história se passa em 2064, cem anos da chamada revolução, na comemoração de 30 anos de que São Paulo se separou do Brasil. Um dia esse garoto desaparece e deixa um bilhete que pode ser interpretado como se tivesse fugido de casa, sido sequestrado ou se matado. Três linhas de investigação, uma feita pelos pais, outra pela polícia e outra pelos amigos. Trabalho com a memória. Esse país que São Paulo funda ao se separar do Brasil é o pós, pós, pós. Não há machismo, não há racismo, não há mais nenhuma dessas mazelas da sociedade. Não há um governo central, o país é governado por uma memória coletiva. É implantado um chip na mente de todo mundo, e a cada memória nova se apaga uma memória antiga. Uma memória pré-país, na verdade. Com o passar do tempo, as memórias de que existiu escravidão, racismo, machismo vão sendo apagadas para fundar essa sociedade ideal.

Onde você foi buscar isso?

Eu fui procurar linhas de estudo que me interessavam tratar, como o de uma professora norte-americana que fundou uma área de estudos sobre o que nomeou síndrome do estresse traumático pós-escravidão. Como comportamentos nossos, dos negros da diáspora vêm sendo ditados como herança da escravidão. E de todo o estresse traumático que a escravidão segue provocando na vida dos povos negros. Alguns estudos dizem até que ficam marcas no DNA, ou seja, não é só uma síndrome, é uma modificação genética. E esse chip implantado para o apagamento da memória mostra como nós brasileiros nunca consideramos a importância do racismo como estrutural nesta sociedade, estruturante da vida da população negra em geral. No livro, alguns chips implantados em pessoas negras têm um bug, causado principalmente pela não consideração dos brancos ao programarem o chip. O do Josenildo é um desses, e por aí passa a história, pelo envolvimento dele com outros, na tentativa de recuperar uma memória. É uma luta atual, que sempre foi nossa.

É um livro que trata do racismo em uma narrativa interessantíssima, com a possibilidade de levar o tema para públicos variados. Você faz isso em diversos textos, não só nos literários…

Quando eu falo ou escrevo sobre racismo, eu tento ser didática o suficiente para que não afaste quem nunca teve nenhum contato com aquele assunto, mas ao mesmo tempo traga uma profundidade que não vai deixar de fora quem às vezes entende do tema mais do que eu. E talvez isso seja algo que a publicidade tenha me dado. Entender que não quero ser uma escritora hermética, que só os escritores leem ou conhecem. Eu quero ser alguém que está falando com um público cada vez mais amplo. E de modo que todos entendam e não se sintam diminuídos. Tanta gente já estudou e falou mais do que eu sobre racismo, por exemplo, que eu não consigo trazer quase nada de novo, a não ser uma tentativa de analisar este momento que a gente vive. É pegar o que as pessoas já falaram e ser uma espécie de tradutora.

Ouvindo agora, pensei em um texto que você publicou em sua coluna no The Intercept sobre o turbante. Naquela polêmica toda você foi extremamente didática. Mulheres negras se sentiram contempladas e muitas pessoas brancas conseguiram compreender qual era a questão central ali.

Eu estava sentindo ali uma confusão, como quase sempre acontece na internet. Nunca o assunto discutido é o mais importante a ser discutido. Principalmente racismo, que é um assunto de que as pessoas tentam fugir por todas as tangentes possíveis. De repente a conversa estava em: não quer que ninguém use turbante, então você precisa parar de comer pizza. Essa simplificação de um discurso, porque as pessoas acham que tudo deve ser assimilado rapidamente, irrita. Eu tenho vontade de fazer o movimento slowcomprehension, slowthinking. Vamos parar para pensar, qual é o ponto importante ali? O que um turbante representa na cabeça de uma mulher negra e o que um turbante representa na cabeça de uma mulher branca? Naquele momento foi uma tempestade perfeita. Porque você tinha uma garota com câncer acusando mulheres negras de a terem agredido pelo uso do turbante. É uma história na qual eu não acredito. Eu fui procurar a rede social da menina e vi coisas extremamente racistas. Eu tenho os prints de coisas como: a minha vida é um angolano de 30 cm que não usa KY. Em outros momentos, ela mandando pessoas voltarem para a senzala. Na mídia ninguém fez isso. Eu não queria expor a menina naquele ponto. Eu não quero o mal, eu quero bem. Eu quero que ela tenha paz de espírito para se curar e eu acho que ela não tem a menor ideia de onde estava se metendo, do bafafá que esse assunto ia causar. Então preferi não expô-la. Mas foi um texto escrito me segurando: como ninguém nunca pensou que essa menina pudesse estar tendo uma atitude racista ao fazer aquele post? Aquele “vai ter branca de turbante, sim”, que depois de ter sido instruída mudou para “vai ter todo mundo de turbante, sim”, é extremamente racista.

O novo livro vai ser lançado no primeiro semestre de 2018, é isso?

Acredito que sim [risos].

E um novo portal se abriu para a escrita dele?

Eu acho que não teve a magia, não. Foi muito mais pé no chão. Talvez porque eu tenha noção do que é escrever um livro, antes eu realmente não tinha. Quando larguei a publicidade para mudar para Itaparica pensei: em seis meses eu pesquiso, escrevo, publico. Foi uma coisa muito mais aventureira, intuitiva, por mais que eu tente preservar, porque isso traz frescor ao texto. Talvez esse frescor venha do que tenho escrito em outras áreas. Me interessa muito o primeiro. A primeira peça, o primeiro seriado, o primeiro filme, o primeiro livro.

Em que primeiro destes você tem trabalhado?

Estou terminando uma peça. Está terminada, mas estou retrabalhando ainda. Ela se chama Tchau, querida.  E vem exatamente do momento que estamos vivendo, do papel de uma mulher em uma situação de poder. Me interessa muito aquele telefonema que vazou, em que foi dita a frase “Tchau, querida”. Dilma estava presidenta e Lula a chamava de querida. Nós mulheres sabemos muito bem o que um querida significa em um ambiente de trabalho. Uma coisa paternalista, para te tirar. Ele, ex-presidente, e ela o chamando de senhor o tempo todo. Me interessa o lugar de poder da mulher que mesmo tendo chegado lá é tratada dessa maneira. Precisamos trazer nossas vozes para reconstruir. Eu falo que me interessa a fissura. E acho que estamos nesse momento de fissura. Kintsugi, a arte japonesa, é uma metáfora de onde eu quero trabalhar, sobre o que eu quero falar. Quando a cerâmica quebra, eles fazem uma mistura de laca com pó de outro e colam aquilo, deixando muito visível que a colagem aconteceu. Esse, para mim, é o papel do artista contemporâneo. É aquele que cola, liga, mas não faz desaparecer. Permanece ali como incômodo, com trauma, como relevo. Ele não se incorpora ao tecido mais. Na verdade ele é a marca de que aquelas rupturas aconteceram. Estamos em um momento quando algo se quebrou. Está falido. O sistema de governo que funciona no Brasil há séculos se mostrou falido, quebrado. E não me interessa ser assimilada em uma sociedade racista, machista, homofóbica. Eu não quero me confundir com essa sociedade. Eu quero ajudar a criar um novo modelo de sociedade, que parta da fissura, do quebrado. É interessante notar que, na arte japonesa, a fissura valoriza o objeto que se quebrou. Depois de ser restaurado com pó de ouro, o objeto é mais valioso. Nossas vozes e nossas ideias são pó de ouro.

 

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