Ana Cristina Cesar e a poesia “da” mulher

Ana Cristina Cesar e a poesia “da” mulher
Os poetas franceses Arthur Rimbaud, Stéphane Mallarmé e Charles Baudelaire (Fotos: Reprodução)

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No ensaio-ficção “Literatura e mulher: essa palavra de luxo”, de 1979, Ana Cristina Cesar – sob a capa de Sylvia Riverrun – questiona a poesia “de” mulher e reivindica a visibilidade de uma poesia “da” mulher com “a lama no terno branco, o soco na cara, o corpo a corpo com a vida”. Está em cena a poeta da contracultura e do desbunde.

Sua produção foi rápida e intensa: ensaios, resenhas, traduções, poesia, prosa, cartas, viagens. Em 1976, seus poemas integraram a antologia 26 poetas hoje, organizada por Heloisa Teixeira (antes, Buarque de Hollanda), livro que acabou se tornando um marco para a poesia da década. Em 1979, publicou Cenas de abril e Correspondência completa; em 1980, Luvas de pelica na Inglaterra, enquanto cursava seu Master in Arts na Universidade de Essex, onde se dedicou ao estudo e à prática da tradução, aproximando-se literariamente de Emily Dickinson, Sylvia Plath e Katherine Mansfield, entre outros escritores, com trabalho final sobre a tradução completa e comentada em 80 notas do conto “Bliss” da autora neozelandesa. Também em 1980, publicou sua dissertação de mestrado na UFRJ sobre a literatura brasileira no cinema documentário, com o título Literatura não é documento. No final de 1982, seu livro A teus pés saiu por uma editora comercial, incluindo os três outros publicados independentemente. Dois anos após sua precoce morte, aos 31 anos, Armando Freitas Filho reuniu seus “inéditos e dispersos” em livro de 1985. Os manuscritos “antigos e soltos” da pasta rosa foram catalogados por Manoela Daudt d’Oliveira e organizados para publicação fac-similar em 2008 por Viviana Bosi. Há muita coisa de Ana ainda por aí, que não cabe neste parágrafo.

Ana Cristina passou fugazmente pela vida, mas não pela literatura brasileira. Até hoje, o impacto de sua poesia é grande, e esta é uma questão que deve ser colocada pela crítica literária feminista. Ao reivindicar o sentido de poesia “da” mulher, ela afirma, definitivamente, na literatura brasileira, a poética do corpo da mulher. “Acordei com coceira no hímen”, diz em “Arpejos”. Seu trabalho mais específico de linguagem revela isso. Ainda em “Arpejos”: “Saio depois de tantos ensaios”. Depois de Ana Cristina Cesar, já não se pode mais falar de poesia escrita por mulheres sem uma performance in praesentia do corpo que desliza para a página e da página para o corpo.

Olho muito tempo o corpo de um poema
Até perder de vista o que não seja corpo
E sentir separado entre os dentes
Um filete de sangue
Nas gengivas

I
Enquanto leio meus seios estão a descoberto. É difícil concentrar-me ao ver seus bicos. Então rabisco as folhas deste álbum. Poética quebrada pelo meio.

II
Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. É difícil escondê-los no meio dessas letras. Então me nutro das tetas dos poetas pensados no meu seio.

nada, esta espuma
Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia.

Os três textos acima complementam-se. Ana Cristina tem consciência de que o poema reúne uma parte sensual, corpórea, e outra intelectiva, pensada. No primeiro poema, sem título, o olhar insistente do leitor-voyeur sobre o corpo do poema desencadeia o que o eu lírico já esperava: o ato de ler é sempre um desconforto, assim como também é o ato de escrever o poema. O leitor está completamente sob o efeito do poema em seu corpo. E o efeito é um filete de sangue, a dor fina e aguda, o mal-estar do afrontamento, a dificuldade de escrita e de sua performance, como bem exemplifica o segundo texto, cuja forma, aliás, é difícil de ser definida. Essa forma não forma – sem versos ou estrofes; sem parágrafos – é bem significativa na poética performática de Ana C.

A performance a que me refiro, aqui, é intrínseca ao próprio ato de realização da obra poética. Para Ana Cristina, o texto (poema ou prosa) é sempre construção, mais do que composição. No caso do segundo, por exemplo, sua construção tem semelhança com a forma do palimpsesto: uma parte constrói-se a partir de outra, em cima de outra, enquanto sua leitura exige a desconstrução dessa mesma forma construída. O leitor logo observa que as palavras têm semelhança gráfica e fonética e são substituídas performaticamente. A mudança da parte I para a parte II não é apenas visual, embora essa diferença também seja sutil. As palavras, inscritas no campo semântico do corpo da mulher e da escrita, têm significados diferentes, mas passam a ser sinônimas no corpo do poema: seios e textos; bicos e letras; concentrar e esconder; rabisco e nutro; meio e seio.

Diferente do palimpsesto, no entanto, uma parte não cobre, nem rasura, muito menos apaga a outra. Ao se sobreporem, incorporam-se, sem que seus sentidos sejam substituídos. Corpo de escrita e corpo de mulher se complementam, portanto: junto à construção do texto, a performance poética de Ana afirma, ao mesmo tempo, a sexualidade feminina e a escrita da mulher. Nesse ponto, sua poesia exemplifica na literatura brasileira o que Shira Wolosky observou na mesma época na poesia americana, ao estudar as relações entre gênero e voz poética em seu livro The art of poetry – how to read a poem, de 2002. Professora de Inglês e Estudos Americanos na Hebrew University of Jerusalem, Wolosky diz: “No final do século 20, expressões rebeldes de dissidência feminina e de protesto contra normas culturais herdadas tornaram-se mais abertas e explosivas. A contenção indireta de Marianne Moore e Elisabeth Bishop deu lugar à ideologização direta de Adrienne Rich e à selvageria perturbadora de Sylvia Plath”.

Talvez não tanto como a “ideologização direta de Adrienne Rich”, mas mais próxima da “selvageria perturbadora de Sylvia Plath”, Ana Cristina encontra, neste e em alguns outros poemas, uma forma própria de “expressão rebelde” e afirmação da voz poética feminina na poesia “da” mulher. Estamos diante de um texto-poema-prosa, ou uma forma outra, não canônica, possivelmente até anticanônica. Estamos diante de um texto em que as tetas e os seios precisam ser pensados, simultaneamente, no passado e no futuro. De que eu me nutro? O que eu nutro? O que descubro no ato de construção de meu texto? Como me descubro no ato de construção de meu texto? O verbo descobrir, bem o sabemos, significa tanto encontrar algo pela primeira vez, como também retirar o que está coberto, ficar nu. E Ana C. é exímia nas palavras encobertas por camadas de plurissignificação, a brincar conosco, gatuna, o jogo do descobrimento.

A poesia de Ana Cristina Cesar sempre manteve uma relação produtiva com a tradição poética (canonicamente masculina, convém ressaltar), seja sob o ponto de vista formal, seja sob o ponto de vista temático. Costumo mesmo dizer que Ana Cristina faz uma “poesia de biblioteca”, porque tem consciência de que o processo de criação não se dá a partir de um marco zero. Ela lê a tradição, escreve a partir dela e junto com ela. Ana Cristina é poeta leitora. Ao rebelar-se contra os gêneros textuais e a diferença formal entre prosa e poesia, sua forma transgressora de escrita passa a relacionar-se com o próprio processo de construção de uma voz poética da mulher, que se instaura na e pela linguagem literária. Ela sabe que o processo de leitura e produção poética é perturbador, selvagem (para insistirmos na imagem de Wolosky sobre Plath). Após a leitura da poesia de Ana, a situação é sempre de desconforto, afrontamento – sobra mesmo um filete de sangue nas gengivas; resta um conjunto de fragmentos (“poética quebrada pelo meio”); fica sempre uma dúvida, como bem exemplifica a retomada da exata metade do primeiro verso de “Salut”, de Mallarmé: Rien, cette écume, vierge verse. O que fazer depois do “nada, esta espuma”?

A situação, porém, não é só de mal-estar. A situação é também de enfrentamento, que é sugerida pela paronímia com a palavra “afrontamento”, utilizada por Ana no terceiro poema. O dicionário nos ensina que “afrontamento” pode significar: 1) mal-estar por má digestão; 2) dispneia; e também 3) a ação de afrontar. Os três significados da palavra remetem, simultaneamente, a uma imagem recorrente do poema: o barco e a tripulação em náusea e dispneia, afrontados e afrontando violentamente ondas e tempestades, enquanto abrem caminhos. A raiz comum a “nau” e “náusea” merece ser lembrada aqui.

Muitas referências literárias podem ser também citadas: o barco em que está o poeta mallarmaico fazendo seu brinde (Une ivresse belle m’engage); a Stultifera navis medieval; a navilouca que deu nome à revista brasileira dos anos 1970; a nau como metáfora da viagem literária no “Bateau ivre” de Rimbaud; a popa do navio de Mallarmé, a cabeceira da mesa do brinde, a sobreposição de imagens metafóricas (que Mallarmé chama de surimpressions métaphoriques) entre a vela do barco, a toalha da mesa, a página em branco. É sedutor o processo de leitura de “nada, esta espuma”, de Ana C., em diálogo com “Salut”, de Mallarmé, ambos com suas sobreposições de imagens e sentidos, sem delimitação alguma: existe texto sem referência? o que é autoria? onde está o gênio original? há algum? Parto, então, para o ponto de chegada – ou a saída. Interessa-me, no momento, a imagem do muro, que exige uma pergunta: devo lançar-me?

No poema de Ana Cristina, o eu lírico escreve num barco, mais precisamente da amurada do barco. Ela está dividida entre o desejo que a afronta e o que quer enfrentar. Aliás, é até difícil definir um gênero – masculino ou feminino – para a eu lírica. Esse deslizamento de posições marca toda a estrutura formal e semântica do poema, que se dá também em duplicidade: dois períodos, um mais longo que o outro; contenção pelo mal-estar e dispneia, propulsão pelo desejo; não saber, insistir; sons abertos da deusa que sobe à superfície, sons fechados da deusa que castiga com os uivos; aparecer no ar, esconder no mar; ar, água; cantos, uivos; Afrodite que nasceu da espuma do mar, monstro aquático feminino; deusa, sereia. A própria imagem da sereia, com que Ana Cristina termina o poema, aliás, é dual: ar e água; humana e animal; beleza e perigo.

Precisamos chegar ao fim do poema para que nossos ouvidos, atentos ao som de sua performance in praesentia, sejam levados a estabelecer a simetria fônica entre o terceiro e o sexto versos: neles, a aliteração do fonema /s/, que captura o sibilar das sereias e sua sinuosidade, leva-nos a estabelecer simetria semântica entre as duas únicas figuras femininas que aparecem no texto: a deusa do terceiro verso, a sereia do sexto. As duas já não mais contrastam, e talvez nunca tenham contrastado. As linhas que pareciam demarcar limites já são questionáveis: a espuma do mar, a amurada do barco, a linha do papel, o uivo do canto, a maldade da escrita, o prazer da escrita, o risco na página, o risco de querer tanto os seios da sereia…

Esse verso final do poema me impressiona incrivelmente. Ele é simples e direto, sintaticamente escorreito, mas profundo: “quero tanto os seios da sereia”. O som sibilante /s/ e a letra sinuosa S remetem à sedução do ato de escrita e, por isso, a seu desejo como um corpo de caminhos curvos, jamais planos. Ana Cristina está ciente de que a poesia se localiza naquele espaço entre coração e cérebro, entre vigor da paixão e rigor do intelecto. Ela tem consciência de que a poesia significa lançar-se a outro ou outra ou outrem em desejo.

Derivada do latim desiderium, a palavra “desejo” tem sidera (astro, estrela) no radical. Isso traz uma amplificação cósmica ao desejo que irradia no ato poético. Escrever é, portanto, lançar-se ao encontro corpo a corpo, ciente todo o tempo de que o poeta (e mais ainda a poeta) se lança num terreno caudaloso, inesperado e misterioso – com o risco da morte pelo canto da sereia: a morte tanto através do canto, quanto a morte por causa do canto, o que me remete a Cecília Meireles e a sua sempre autoconsciência poética, quando diz em “Aceitação” de Viagem (1939): “Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:/ não tenho inveja das cigarras: também vou morrer de cantar.”

Ana perscruta a poesia da amurada do barco louco e bêbado. A solução, se há alguma, é saltar do barco e enfrentar o risco da escrita, com sua maldade e prazer inscritos no próprio corpo do poema. Afinal, a sereia dos seios tão desejados e dos uivos de morte não poderia ser a poeta do filete de sangue nas gengivas e dos bicos das canetas e das tetas que se descobrem na escrita? Por isso insisto em dizer que, com Ana Cristina Cesar, a poesia passou a se fazer mais firmemente escrita da poesia “da” mulher. Mas essa “nova (?) poética” não se faz apenas desde então (é a própria poeta da biblioteca que me sopra essa advertência, lembrando o ponto de interrogação usado por Sylvia Riverrun). Ela faz-se em longa linhagem de poetas que, cada uma com seu modo de linguagem, se lançam do muro do barco, com todos os seus medos e desejos. Não tem mais jeito. O risco da escrita e o risco na página estão feitos.

Anélia Montechiari Pietrani é professora de Literatura na UFRJ, onde coordena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura. Autora de Experiência do limite: Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath entre escritos e vividos (Eduff, 2009) e organizadora de Mulherada poeta: estudos de crítica feminista (Oficina Raquel, 2023).


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