Amigos nada secretos

Amigos nada secretos

 

Marcelo Semer escreve sobre o filme Amigo Secreto, de Maria Augusta Ramos, que trata dos fatos e equívocos da Operação Lava Jato julgada por Sergio Moro

 

– As perguntas são minhas, não da acusação.

Sérgio Moro responde ao interrogando Lula como se devesse a ele alguma espécie de satisfação.

Na abertura de Amigo Secreto, da cineasta Maria Augusta Ramos, uma cena repleta de simbolismo: Lula parece se dirigir ao futuro; Moro defende com unhas e dentes a propriedade e a pertinência de seus questionamentos, o que, saberíamos depois, era mesmo a questão central deste processo. Indagado em outra oportunidade, Moro havia admitido o impensável: que se sentira em um ringue com o ex-presidente, durante o interrogatório. Como vimos no filme de Maria Augusta, era ele quem estava nas cordas.

Por trás das cenas, pelos fatos que os vazamentos que The Intercept proporcionariam, viríamos a saber que Sérgio Moro tentou a vingança: instruiu Deltan Dallagnol a disputar na mídia o resultado do depoimento, porque o réu “já havia feito seu showzinho”. A disputa de narrativas foi a peça central de um processo que se passava, sobretudo, no campo da espetacularização.

Imbuindo-se de um lugar de fala que jamais deveria ter tido, fica claro o quanto Moro se abalou ao ser colocado pelo réu como um mero leitor da acusação. A indignação tinha bons motivos: Moro era a cabeça, o coração e o braço executor da Lava Jato, um combatente de Lula e do PT, como, aliás, não se cansaria de repetir no começo de sua atabalhoada carreira política, ainda que isso representasse sepultar o mais pálido resquício de seu legado jurídico.

Amigo Secreto mostra, com o competente e tradicional olhar distante da diretora, como já o fizera, recentemente em O Processo e, antes em Justiça e Juízo, o nonsense de uma perseguição que recebeu aplausos em boa parte de sua trajetória – até mesmo, acrescento, pelo futuro detrator Glenn Greenwald – e que depois, desmascarada, foi resultando em um completo esvaziamento jurídico e político. Nesse meio tempo, nada menos do que uma eleição presidencial foi decidida no tapetão, ironicamente com o aval institucional da Lei da Ficha Limpa, promulgada no próprio governo petista.

Mas a Lava Jato e o poder político que ela representou está longe de ser uma perversão daquelas que, ao final da novela, as partes podem se reconciliar ao reconhecer o equívoco. O equívoco da operação, e isso talvez ainda esteja para ser dito, está em sua racionalidade, não em seus desvios. Por isso, a esperada autocrítica abrange a muitos que, no correr do julgamento, aplaudiram-na timidamente ou se limitaram a questionar apenas “os excessos”.

Moro antecipara esta racionalidade da operação em nada menos que dez anos, ao elogiar, em 2004, em um artigo isolado de sua parca produção científica (“Considerações sobre a Operação Mani Pulite”, in Revista CEJ, n. 26, jul-set/2004), de uma forma desbragada e quase juvenil, os elementos para lá de questionáveis que deram ensejo à Operação Mani Pulite, nos anos 1990 na Itália. E isso, mesmo depois que Berlusconi já havia galgado ao poder como o subproduto destas incongruências.

Sérgio Moro qualificava a operação de uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa, e apesentava o resultado dela de uma forma muito similar aos números superlativos com que a Lava Jato viria a ser tratada uma década depois: “2.993 mandados de prisão haviam sido expedidos; 6.059 pessoas estavam sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido primeiros-ministros”.

Antoine Garapon, em seu O Guardião das Promessas (Revan, 1996), já havia identificado esses juízes que têm a mentalidade de cruzada, que reivindicam abertamente as estratégias midiáticas, e que se entregam à deriva populista, em busca de um acesso direto à população, por sobre leis, jurisprudências e até mesmo os políticos, a quem, na continuidade do raciocínio, deveriam substituir.

Ainda assim, supostamente com a expertise de lidar com crimes financeiros, Moro chegou, entre outros frutos de sua reputação, a assessorar a ministra Rosa Weber no mais importante julgamento criminal do STF.

Mas o que pregava Sérgio Moro de tão revelador neste artigo sobre a Mãos Limpas:

a-) a defesa inconteste da “prisão pré-julgamento” como forma de evidenciar a eficácia da ação judicial (e não por necessidades cautelares);

b-) o largo uso da imprensa (Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no “L’Expresso”, no “La Republica” e outros jornais e revistas simpatizantes”);

c-) o processo de deslegitimação da classe política como essencial para a continuidade da operação.

Em resumo: As prisões, confissões e a publicidade conferida às informações obtidas geraram um círculo virtuoso, consistindo na única explicação possível para a magnitude dos resultados obtidos pela operação.”

O que devia nos escandalizar, muito antes que o hacker tornasse de fato públicas conversas que jamais foram privadas (a hotline que juiz e acusador mantinham sobre questões ligadas ao julgamento e da qual excluíam apenas a defesa), era o fato estarrecedor que o juiz mais famoso e respeitado do país se lançara numa cruzada, com os mesmos pilares das Mãos Limpas: prisões para delações, vazamentos seletivos e a incansável busca da opinião pública como forma de neutralizar as representações partidárias. E mais, como conseguia fazer tudo isso, à vista e com o apoio de tantos, sendo um magistrado, com dever de imparcialidade, e não um promotor de justiça, como aqueles que conduziram as investigações na Itália.

As reportagens de The Intercept, reproduzidas em vários jornais, inclusive o saudoso El País brasileiro, um dos primeiros a legitimar as reportagens, salvaram a todos, ao mostrar o tamanho da perversão: o juiz dava dicas disfarçadas de testemunhas, combinava o timing e o tamanho das denúncias, avisava o promotor dos prazos e das urgências e, quando, enfim, tinha o processo a seu dispor para julgar, já não reunia a menor condição de fazê-lo sem mergulhar no puro cabotinismo.

A exposição foi tal que nem mesmo o STF, que hibernara anos a fio sem decidir questões básicas e cruciais, como a competência universal da Vara de Curitiba, conseguiu se ver livre de anular todo o procedimento, desde o seu nascedouro. Para recolocar a presunção de inocência em seu devido lugar e destroçar a inconstitucional “condução coercitiva”, o STF já havia demorado anos, em longos e quase nada profícuos debates.

Devolvidas as perversões a seus devidos lugares – tanto Deltan quanto Moro, de fato, hoje são candidatos- resta uma questão que juristas e jornalistas ainda não foram capazes de resolver. A racionalidade empregada no processo da Lava jato, a inserção da opinião pública no coração dos processos penais, a lógica de matar no peito e ouvir a voz das ruas, a superação dos princípios, em busca das melhores conveniências e oportunidades, ainda pode nos levar ao culto de outros santos de pés de barro.

É importante compreender que para o Judiciário, um super-herói é tão nocivo quanto a figura de um inimigo público.

 

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Marcelo Semer é Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e escritor. Foi colunista da Cult e é autor de Os Paradoxos da Justiça. Judiciário e Política no Brasil (Contracorrente, 2021)

 

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