Acordes contra a barbárie

Acordes contra a barbárie

Pianista e aluno do compositor austríaco Alban Berg, o filósofo alemão dedicou grande parte de suas reflexões à música de compositores de vanguarda e ao jazz, gênero que considerava um típico fenômeno de “regressão da capacidade auditiva” associado à indústria cultural.

Carlos Eduardo Ortolan Miranda

“Tornou-se manifesto que tudo o que diz respeito à arte deixou de ser evidente, tanto em si mesma como em sua relação com o todo, e até mesmo o seu direito à existência.”
Adorno

O pensamento crítico do filósofo alemão Theodor W. Adorno estendeu-se de forma ampla pela totalidade da cultura de nosso tempo. Das críticas à transformação do conceito de Razão (com a gravidade concei­tual de que o termo se reveste na tradição filosófica) em mera racionali­dade instrumental, solidária dos processos de cálculo e organização do mundo administrado em que vivemos, como desenvolvidas na Dialéti­ca do Esclarecimento, até a compreensão dos mecanismos de liquidação da individualidade e da experiência genuína, descrita em tons aterradores em sua Minima moralia, Adorno ocupou-se, primordialmente, com uma análise materialista da ideologia, da reificação e do potencial de bar­bárie, quer em sua versão cultural, quer como revelada na prática política (como o fascismo), que são as marcas distintivas da evolução do capitalismo tardio.

Adorno escreveu longamente sobre a cultura (e também sobre a possibilidade mesma da realização de uma crítica cultural significativa. Nesta direção é iluminador o artigo “Crítica cultural e sociedade”, de Prismas); a literatura, o cinema e o modernismo nas artes foram tematiza­dos por Adorno em ensaios nos quais a acuidade conceitual de um pensamento dialético encontra expressão por intermédio de um estilo particularmente árduo e exigente. Não seria trabalho desinteressante compreender as relações internas, objetivas, entre a forma exercitada pela en­saística adorniana e seu conteúdo. Conceito e objetividade, ou seja, método dialético e contradição histórica concreta entretecem-se perpetuamente na escritura adorniana.

As reflexões sobre a música, tanto sobre o fenômeno da produção em massa da indústria cultural quanto acerca da chamada música “séria”, como os textos sobre Bach, Wagner, Schönberg e Stravinski, têm um destacado lugar no corpus da obra ador­niana. Melômano apaixonado, pianista e estudante de composição sob orientação de Alban Berg, Adorno reunia qualidades raramente encon­tráveis para a apreciação crítica da produção musical. Munido da estética de Hegel, da crítica de Marx ao fetichismo da mercadoria, e com conhecimento e compreensão técnica da composição musical, as reflexões de Adorno sobre a música encontram-se entre as mais profícuas e provocativas da estética do século XX. Destaque-se aqui a leitura que Adorno realiza do modernismo na música erudita, na qual o dodecafo­nismo de Schönberg é louvado como um momento de progresso na música, enquanto Stravinski é associado ao antitético pólo da regressão. É evidente a influência da historicidade da estética de Hegel na Filosofia da nova música, que compreende a realização formal da obra de arte como desenvolvimento conceitual objetivo do processo histórico. Uma das virtudes da música de Schönberg, segundo a compreende Adorno, é justamente a que a torna tão refratária à apreciação do público mediano. O dodeca­fonismo é uma forma de composição de harmonia logicamente rigorosa e que não se vale de formas cristalizadas como as melodias de fácil aceitação propagadas pelo mercado (muitas vezes em versões popularescas de temas mais complexos da música erudita). Ao se apresentar como um desafio para o ouvinte e exigir uma audição atenta, e não a mera fruição de banalidades no freizeit, a música de Schönberg teria também um valor ético. Ela se apresentaria como um recurso civilizatório, uma resistência ao avanço da barbárie e da coisifi­ca­ção, em franca oposição aos auto­matismos estéticos representados pela ideologia e ao movimento da re­­gres­ são da capacidade auditiva.

Um caso célebre dentre as polêmicas musicais travadas por Adorno (de fato, o mais célebre) é a sua crítica radical do jazz. Longe de constituir um momento episódico em seu pensamento ou uma diatribe lançada no calor de uma discussão, a recusa a conceder ao gênero qualquer conteúdo estético positivo acompanhou Adorno ao longo de toda sua produção filosófica sobre a música. Adorno dedicou ensaios específicos ao tema, como  “Moda Intemporal – Sobre o Jazz”, do supracitado Prismas, e o jazz aparece como caso típico de um produto mercadológico da indústria cultural em seu “O feti­chismo na música e a regressão da capacidade auditiva”.

A virulência da crítica adorniana ao jazz soará talvez um tanto insólita a alguns ouvidos contemporâneos. De fato, o gênero originário de New Orleans percorreu uma longa trajetória desde sua gênese bastarda, produto da confluência da experiência musical e cultural dos creoles, dos negros, dos imigrantes italianos e irlandeses, dos chamados poor white, num verdadeiro  melting pot de raças e influências musicais africanas e européias, até o estágio de aceitação e assimilação pela intelligentsia. Com efeito, não destoa da imagem do intelectual moderno – seja ele um incensado acadêmico ou soi-disant – o conhecimento aprofundado ou ostentado da história do jazz, de seus principais artistas e gravações. Criou-se uma subcultura jazzística, com experts e connaisseurs capazes de identificar uma cantora ou saxofonista logo à audição dos primeiros compassos das gravações consideradas clássicas. Além disso, a música de jazz atingiu o status de epítome da sofisticação e da elegância, sendo habitualmente destacados sua elaboração harmônica, a riqueza de suas linhas melódicas, sua variedade rítmica e o vir­tuosismo de seus executantes. E algo dessa aura de elaboração e sofisticação parece emanar da música de jazz e contaminar, quase magicamente, a platéia de fãs que consome as produções de seus artistas prediletos. O renomado historiador marxista Eric Hobsbawn escreveu uma série de artigos sobre jazz (reunidos em História social do jazz), o escritor fran­cês Boris Vian era trompetista e Sartre e Julio Cortázar apreciadores do estilo. Temos portanto um bem-sucedido processo de assimilação do gênero popular no seio da cultura eru­dita ou highbrow.

A implacável crítica de Adorno demolirá todas as justificativas anteriormente citadas e o fará pontualmente, de forma rigorosa, no seu ensaio Über Jazz. Nesse ensaio de dimensões reduzidas, publicado na revista Merkur em 1953, o filósofo frank­­furtiano recusará todas as virtudes expostas na visão habitual sobre o jazz que procuramos desenvolver. Assim sendo, Adorno não concederá ao jazz qualquer sofisticação harmônica, originalidade melódica ou variação rítmica. O público de amantes de jazz, longe de constituir uma elite intelectual de conhecedores de música, será duramente criticado por Adorno como algo próximo a um grupo de fanáticos religiosos, representantes da Halbbildung ofuscados pela propaganda maciça despejada pelos meios de difusão da indústria cultural e enredados nas malhas da ideologia.

Ao comentar o ritmo típico do jazz, Adorno o caracterizará como sendo essencialmente invariável e fundamentado na síncopa, a acentuação dos contratempos, os tempos fracos do compasso, com o objetivo de produzir uma surpresa no ouvinte. Entretanto, dada a estrutura rítmica essencialmente quaternária e sincopada do jazz, a surpresa possível é na verdade reconhecimento esperado, fórmula padronizada do produto que visa alcançar seu consumidor reificado. Ouvimos aqui, portanto, no lugar da “inovação e criatividade” atribuídos ao jazz, os ruídos da engrenagem da produção em série.

Alguns admiradores de jazz poderiam contra-argumentar com base, por exemplo, na originalidade harmônica ou melódica do gênero. Reconstruindo pacientemente a história da música ocidental, Adorno demonstrará que recursos de composição como a polifonia, dentre outros, encontram precedentes históricos muito mais antigos na música erudita. Não há pois nem novidade rítmica nem originalidade harmônica no jazz. Teríamos, retrucaria o jazzófilo, a invenção e a criatividade do solista, do improvisador que cria uma melodia a partir da estrutura harmônica da canção. Adorno rebaterá que, no­vamente, tal alegação de originalidade é improcedente, pois o solista não faz mais que repisar variações sobre temas conhecidos, melodias tradicionais repetidas à exaustão, o que se revelaria até mesmo na expressão muito utilizada na música de jazz, standard.

Quando comenta o público apreciador de jazz, a crítica de Adorno atinge o ápice de acidez e poder corrosivo: “No núcleo encontramos os experts, ou aqueles que se consideram como tais – pois muitas vezes são fanáticos que usam e abusam de uma terminologia propagada por eles mesmos e que distinguem, com uma seriedade pretensiosa, vários estilos de jazz, mas dificilmente são capazes de dar conta, em termos técnico-musicais precisos, daquilo que os entusiasma.” A comunidade de admiradores de jazz teria, pois, uma estratégia de autovalidação, funcionando em circuito fechado; a partir da utilização de jargões e da aceitação de avaliações impressionistas, os fãs do jazz, como verdadeiro rebanho religioso, protegeriam sua idolatria da possibilidade da crítica externa. Dada a má-fé implícita na mercadoria destinada ao consumo que se vende como obra de arte profunda, tudo bem pesado, trata-se aqui de um movimento de ilusão e ofuscamento ideológicos.

As críticas lançadas ao jazz por Adorno, que expusemos aqui de forma bastante breve, podem, é evidente, receber contra-argumentação razoável. Em Adorno et le jazz, recém-publicado na França, Christian Bé­thune tenta entender os motivos profundos da crítica radical de Adorno ao gênero que nos legou Miles Davis e John Coltrane. A conclusão, com base na Teoria estética, é que o man­darim da cultura alemã, por sua própria formação logocêntrica, jamais teve ouvidos para uma forma de arte que se funda essencialmente na improvisação, e que não se confirma em um cânone escrito e definitivo; além disso, muitas das críticas de Adorno com respeito à invariabilidade rítmica ou à falta de imaginação harmônico-melódica podem ser respondidas pelos apreciadores do jazz, alegando desconhecimento do filósofo das formas mais importantes e audaciosas da música afro-americana.

Isso posto, a radicalidade da crítica de Adorno teria, quero crer, um ca­ráter profilático. Ao identificar um processo de degradação cultural in­dissociável da lógica do sistema re­pro­dutor de mercadorias, Adorno assestou suas baterias contra a música de jazz. Mesmo que se matizem as críticas adornianas a partir da contra-argumentação que mencionamos, o me­ro ato de sintonizar a programação de uma rádio comercial nos revelará, infelizmente, a clarividência de um autor que se atualiza a partir da destruição da cultura e de todos os valores humanos.

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