Aborto como metáfora II

Aborto como metáfora II

A segunda questão interessante relacionada ao discurso masculinista é aquela que relaciona “desejo” da mãe e vida do embrião.

Há quem fale tentando garantir que o aborto é uma questão de “vida” do embrião e não uma questão de “vida”, “corpo” ou de desejo das mulheres e da mulher. Com o apelo ao embrião tentam fazer com que o aborto pareça uma questão geral e não uma questão das mulheres como sujeitos históricos e políticos e da mulher grávida como indivíduo que não é contemplado em sua singularidade humana, senão na identidade da sacrossantificada maternidade em devir. Neste ponto, o discurso antiabortista mascara-se como um discurso “do bem” porque defende “a vida” enquanto, na verdade, incide virulentamente na potência do desejo feminino tentando configurá-lo. No caso, está sempre em cena o suposto desejo de ser mãe contra o “impensável” desejo de não ser mãe. Este é colocado na cultura moralista como improbidade negativista pela qual as mulheres deverão ser punidas (e da qual muitas sentem-se autoculpadas). A mulher que não deseje ser mãe (seja por sua negação em procriar a priori, ou por ter cometido qualquer erro por ignorância, despreparo, engano ou acidente e precise fazer um aborto) deverá pagar simbolicamente por sua negação. O discurso antiabortista é a exigência deste pagamento simbólico, o que faz dele um imperativo violento. E, pior que tudo, há nele aquela falácia sutil que poderia ser desmanchada apenas pela crítica à qual ele se coloca imune como qualquer discurso autoritário: o autoritarismo do discurso masculinista e antiabortista é falacioso, pois ao mesmo tempo que prega contra a prática histórica e cultural do aborto fazendo-o parecer um problema moral, age ele mesmo imoralmente praticando outro tipo de aborto: ele aborta as próprias mulheres, seu desejo, sua autocompreensão, sua liberdade. Assim o faz para autosustentar-se porque é da natureza violenta do discurso patriarcal como discurso contra as mulheres. Na ausência de discurso não é impossível que um homem decida fazer violência com as próprias mãos como, segundo afirma Eva Blay (2008, p.23), tem sido um padrão em nossa cultura.

No ápice do nonsense dos argumentos masculinistas antiabortistas há quem diga que o embrião “não pertença” ao corpo da mulher onde habita. Este argumento é ligado ao argumento da vida. A idéia é conhecida, ela faz parte do senso comum sendo possível ouvi-la constantemente. Uma versão mais elaborada, ainda que perigosamente capciosa, está no âmbito filosófico e jurídico. Ela trata de discutir o estatuto desta “pertença” como sendo especial. Inventa-se, a propósito, metafisicamente a especialidade desta pertença. O estatuto da pertença é considerado tão especial como a “vida” do embrião, nunca a vida de uma mulher é considerada no mesmo amplo sentido (potencialidade, direito, política) com que o embrião é revestido do conceito de vida. Argumenta-se na direção da potência do embrião como vida humana sem que se pense na vida da mulher. O próprio conceito de vida fica obscuro, mas é sobre ele que se insiste como se detendo-o estivesse resolvida a questão da verdade. O caráter ideológico da verdade também não entra em cena.

A mulher é reduzida ao seu corpo e à única potencialidade que interessa é a de que pode ser mãe. Ela mesma que é tratada como mero corpo que pode gestar e parir não tem o direito de tratar o embrião como mero corpo que pode ser extraído do seu próprio por um ato de sua vontade (nem mesmo quando ela teve vontade de engravidar). Enquanto é tratada como mero corpo, é tratada também como um meio da vida do embrião. Um meio usado pelo corpo do embrião. A mãe é um meio do vir-a-ser do embrião. O embrião, por sua vez, não pode nunca ser tratado como mero meio de vida da mulher, coisa que podemos sempre dizer dos filhos que são, enquanto concebidos, manipulados pelos pais (suas intenções, suas motivações para ter filhos e o que fazem com eles depois), mas que jamais podemos dizer de um embrião na medida em que ele enquanto é retirado pelo aborto é liberto da manipulação à qual estará condenado. Em palavras mais claras: os filhos são tidos por interesses, os abortos são a interrupção do interesse sobre os filhos. Pressupomos, é claro, que ninguém pode ser obrigado a ter um  interesse. Assim o interesse na procriação da parte dos homens não pode ser lançado sobre as mulheres e vice-versa.

A questão do embrião como meio para uma coisa que a mulher não deseja coloca que esta mulher é, na verdade, ela mesma o meio do interesse de outrem. E não é do embrião, pois este não tem interesse algum. Antes ele é a condição de possibilidade de que a mulher realize-se como mãe, mesmo que não deseje ser mãe. A pergunta que fica é se podemos a esta altura voltar atrás historicamente dando às costas ao princípio kantiano que informa que a ética é o tratamento de qualquer ser humano como fim e não como meio. A mulher não poderia servir de meio do embrião tornar-se bebê (criança e adulto são potencialidades que escapam da questão) senão por meio de um consentimento baseado em seu desejo (em sua biologia, em sua necessidade, jamais, até porque o sentido de gerar um ser humano pode ser questionado conforme se pode ver lendo o livro de Cabrera e Di Santis (2009). Neste sentido, o aborto de um embrião jamais poderia ser tratado como “meio”, este jamais seria uma questão: o que coloca o problema noutro nível e elimina a falácia do direito do embrião ao qual mulheres grávidas que não desejem ser mães estão condenadas. Neste caso, negar o aborto é fazer da mulher um meio de algo que ela não consente: é, portanto, antiético.

Está em jogo, como é evidente, a questão do estatuto corporal dos seres envolvidos e sua assimetria jurídica. O corpo do embrião é ornado com cuidados metafísicos, mas o “corpo de mulher” não merece o mesmo tratamento por parte da cultura masculinista a não ser para fazer deste corpo o de uma mãe (como também é possível fazer deste corpo o de uma prostituta, de um símbolo sexual, de uma bruxa, todos eles estigmas heterodeterminados pelo patriarcado). Na base deste argumento encontra-se toda a história misógina da filosofia e da teologia que julgam e deliberam sobre os corpos de mulheres, marcando-os como “o segundo sexo” (Beauvoir, 2009) que deve obediência à espiritualidade masculina de nossa civilização patriarcal. Não é demais deixar claro que o termo espiritualidade aqui significa racionalidade que se expressa em um discurso. Por meio desta marcação, a mulher é sempre corpo, o homem é sempre espírito, ou seja, aquela é sensibilidade inarticulável e este é racionalidade que se expressa por meio da linguagem discursiva. Não é de admirar que as mulheres não se pronunciem sobre a questão que lhes importa, pois o dizer das mulheres (tantas vezes analisado por várias feministas) não seria próprio de uma “natureza feminina”. Que a mulher se pronunciasse seria o mesmo que cair em contradição com o seu próprio ser racionalmente inexpressivo. Masculinistad de plantão amparam-se ainda no mais débil jusnaturalismo para defender seu lugar ao tratar de assunto que não lhe diz respeito.

Neste argumento em que está em jogo a relação entre mulher e embrião, está clara a existência de dois pesos e duas medidas. Corpo feminino e embrião não correspondem um ao outro senão por uma relação cujo significado está em que o caráter “especial” do embrião determina que ele não possa submeter-se ao corpo de uma mulher. No entanto, para que o corpo do embrião seja “superiorizado”, ele precisa antes ser espiritualizado. Esta sobreposição é a espiritualização do embrião. Ela é produzida por meio do discurso, seja das teologias, seja das filosofias ou das teorias jurídicas que trabalham neste sentido. Na mesma direção, o corpo da mulher precisa ser desespiritualizado para valer menos do que o do embrião no mercado patriarcal que define a seu bel prazer o que é “vida”, o que é “ser humano” desde que dispõe da máquina antropológica do discurso.

Para menorizar, para desespiritualizar e, por fim, dominar, o corpo da mulher tem que ser marcado por “sexo” e “nudez”. A mãe, no entanto, seria considerada uma ultrapassagem (ainda que dialética) desta forma de ser das mulheres. Infelizmente, todo o imaginário pornográfico que objetiviza a mulher (e assim a manipula fazendo-a servir como meio para outra coisa) contribui para o processo de desespiritualização da qual a mulher só consegue sair quando acede à posição iconológica da mãe.

Em resumo: o corpo do embrião é considerado mais especial do que o corpo da mulher porque ele seria espiritualizado e o da mulher não. A espiritualização, por sua vez, se dá pela idéia da “vida” que ele é. A vida da mulher, no entanto, não é discutida no que concerne à mulher.

Na economia dos corpos, o corpo do embrião funciona como se ele fosse um hospedeiro para a mulher que não deseja ser mãe. No masculinismo esta condição é algo de sublime. No masculinismo não se ousa dizer que seja um hospedeiro desde que se pressupõe que as mulheres e a mulher grávida teria nascido para o ato de hospedá-lo. No entanto, quando não convidado  – e, neste caso, a teoria moralista sempre coloca que a mulher quis engravidar desde que manteve relações sexuais, ou seja, ela é culpabilizada por ter feito sexo com um homem, o que se confirma na lei brasileira pela qual se tem o direito de abortar desde que se tenha sido estuprada, caso em que seria impossível sustentar o conhecimento prévio sobre o ato sexual e suas conseqüências e para a qual a questão da vida do embrião não importa – este hospedeiro continuaria, segundo o masculinismo, com o mesmo direito de habitar o corpo no qual reside. Indesejado, o embrião seria um hospedeiro escravizante e a mulher grávida seria uma vítima do estado moral da sociedade anti-abortista. A gravidez seria uma punição, a maternidade uma condenação sobre a qual a mulher não teria o direito de se manifestar. Não seria apenas um réu sem defesa, mas uma condenada. Afinal, na falácia dos argumentos, aceitar que a mulher se manifeste seria incorrer no risco de negar a sua “natureza” irreflexiva e meramente corporal.

Tal questão não é colocada nesta linguagem, pois uma fala neste sentido pode sempre desmistificar não apenas o aborto, mas também o mito da maternidade sem o qual mulheres podem questionar a obrigação de ter filhos e, assim, mudar o sentido de suas vidas – e quem sabe, daqueles que estão dela dependendo, seja como “filhos”, seja como “pais” de seus “filhos” – já previamente traçado no quadro da dominação masculina que é o patriarcado como sistema moral-político com jogos de linguagem e argumentos próprios.

Mas é preciso prestar ainda mais atenção ao argumento com que se põe em cena a questão da pertença entre embrião e corpo de mulher na relação com a questão do desejo. O embrião apenas pertenceria ao corpo da mulher na condição de hospedeiro, mas não seria submisso a ela, no sentido de depender de seu desejo. O desejo da mulher é descartado sumariamente como se mulheres fossem meras fêmeas animais submetidas à natureza. Isto porque se parte do pressuposto de que seu desejo não é suficiente para “espiritualizá-la”. É a isso que são reduzidas no discurso sobre a “vida” dos embriões. A escolha de uma mulher é simplesmente eliminada – abortada – previamente da questão. O suposto corpo não espiritualizado da mulher é o lastro a partir do qual se pensa a separação, a diferença de estatuto, entre o corpo do embrião e o da mulher. Em não correspondendo um ao outro, se o embrião está vivo, se a vida é sua e não tem relação com a vida da mulher – não pertence a ela – é porque ele não é um corpo da mesma natureza que o corpo de uma mulher, o que levaria a pensar ou que o corpo de uma mulher não é vivo (o que seria um absurdo), ou, ao contrário, que é meramente vivo (no sentido da mera vida de que fala Walter Benjamin, 2001, p.44) enquanto o corpo do embrião seria espiritualidade que se encarna e devém corpo. Outro absurdo é gerado, mas ele tem teor biológico, como se o corpo do embrião não proviesse do corpo da mulher. O que também garantiria o direito de tirá-lo de dentro já que ele já não estaria dentro. A falácia naturalista pesaria sobre as mulheres que teriam que obedecer a uma idéia de natureza a ser realizada na cultura (o mesmo argumento é usado para combater a homossexualidade). O embrião é marcado pela espiritualidade como elevação e distanciamento da corporalidade sexual, enquanto o corpo de uma mulher é marcado pela sexualidade como eliminação da espiritualidade, restando-lhe apenas a oportunidade de tornar-se espiritual pela maternidade. Ou seja, pelo corpo do embrião.

Está dado então o modo como se vem a garantir a existência do embrião e a necessidade da mulher enquanto mãe. É neste ponto que é preciso questionar o lugar da sacralização da maternidade compreendendo que o ato de tornar sacro é ao mesmo tempo tornar intocável e sacrificado (Agamben, 2002, p. 89-94). A mãe é o próprio homo sacer do direito romano, aquela que está incluída enquanto excluída. Aquela que não desejar tal santificação pode ser punida.

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