Abdias afrodiaspórico

Abdias afrodiaspórico
Tela “Cemitério Vudu” (1968), de Abdias Nascimento (Foto: Reprodução)

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Figura central para pensar a negritude e a arte negra no Brasil, Abdias Nascimento (1914-2011) tem uma extensa obra como artista plástico, cuja carreira teve início em 1968. Em 13 de dezembro daquele ano, a Ditadura Militar promulgou o AI-5, o que levou o artista a se exilar nos Estados Unidos. Em contato com o circuito artístico norte-americano, Abdias intensificou sua produção pictórica, também como forma, assim dizia, de transpassar as dificuldades de expressão com a barreira linguística do inglês.

Nos seus quadros, abundam traços, setas e linhas que se cruzam, como pontos riscados do candomblé, e as diversas cores que aludem aos orixás, como o amarelo de Oxum, o verde de Oxóssi e o vermelho de Xangô. Como ele declarou, “o que é importante para mim nas minhas pinturas é o mundo mental e a diferença cultural do negro que se sente africano, mas que está nas Américas”, evidenciando a urdidura de elementos culturais afrodiaspóricos que percorre suas obras visuais.

De formação católica, Abdias entrou em contato com as religiões afro-brasileiras no final da década de 1930, após se mudar de São Paulo para o Rio de Janeiro. Nascido em Franca (SP), foi para a capital em 1929, onde participou da Frente Negra Brasileira e organizou protestos contra o racismo. No Rio de Janeiro, estabeleceu relações com importantes figuras religiosas e frequentou alguns terreiros, como o de Joãozinho da Gomeia, em Duque de Caxias, para o qual levou o escritor Albert Camus em sua passagem pelo Brasil, em 1949. Também se aprofundou nas religiões de matriz africana quando, durante seu exílio de 13 anos, foi professor visitante na Universidade de Ifé, na Nigéria.

Antes do período no exterior e de seu desenvolvimento como artista plástico, Abdias já atuara como ator e dramaturgo, à frente da criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), em 1944, como resposta à ausência de atores negros no cenário teatral brasileiro; idealizou o Museu de Arte Negra em 1950, para catalogar, divulgar e criar um acervo dedicado à obra de artistas negros; e, a partir do final de 1948, editou o jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro.

Trechos dessa trajetória, assim como grande parte de seus quadros, podem ser vistos na exposição Terceiro Ato: Sortilégio, aberta no Instituto Inhotim até 6 de agosto. Em parceria com o Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros – o Ipeafro, fundado por Abdias em 1981, quando retornou do exílio –, o museu em Brumadinho (MG) reúne mais de 180 obras de Abdias e de outros artistas que dialogam com sua produção e/ou conviveram com ele no exílio, como Rubem Valentim, Mestre Didi, Sebastião Januário e LeRoy Clarke.

Sob o signo de Exu, orixá que orientou a concepção curatorial e a montagem desse Terceiro Ato, a exposição carrega a contradição já em seu título: é um sortilégio (do latim sors, sorte/destino, e legere, ler), uma feitiçaria divinatória, para Exu, o orixá dos mal-entendidos e rupturas, avesso ao conhecimento da fortuna. À maneira do senhor das encruzilhadas, caracterizado pelo acidental e conflitante: é o mais novo orixá transformado no mais velho, aquele que “troca todos de lugar” para “inverter o mundo”, fazer incertas as coisas e promover o encontro pelas direções opostas, segundo algumas narrativas compiladas por Reginaldo Prandi.

Na produção de Abdias, diversos quadros homenageiam e retratam o orixá, como “Exu e Três Tempos de Roxo”, “Vale de Exu”, “Pomba Gira-Fêmea de Sete Exus”, “Ritual de Exu” e “Padê de Exu”, nos quais predominam o vermelho e o preto e os tridentes e riscados que se entrecruzam nas telas. Às voltas com Exu, tais criações parecem erigir a contradição e o múltiplo como sistema de linguagem, promovendo uma guinada em relação aos moldes do pensamento eurocêntrico assentado na unidade e na linearidade. Sobre o discurso retilíneo da razão ocidental, a poética preta de Abdias, com Exu e os demais orixás, ginga e funambula tecendo outras epistemes.

Como afirma a psicóloga e artista plástica Castiel Vitorino, em seu Quando o sol aqui não mais brilhar, perfurar a temporalidade linear é subverter a garantia da supremacia branca, em uma disputa epistêmica que coloca em jogo sistemas de linguagem em diálogo com outras ontologias. Desenraizado pela máquina de destruição colonial, o artista encontra na outra margem do Atlântico os elementos e figuras que dialogam com a ancestralidade de seu povo, derruindo o tempo linear cristão para mergulhar no passado como forma de erigir outros futuros.

No sistema simbólico adinkra, utilizado pelo grupo linguístico acã, na atual República de Gana, lê-se tal ideia no ideograma sankofa, que significa “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”. A famosa imagem de um pássaro voltado com a cabeça para trás também figura nos quadros de Abdias a partir da década de 1980, assim como outros símbolos adinkra e mesmo hieróglifos egípcios. Correspondem ao momento em que, além dos símbolos do candomblé e das religiões afro-brasileiras, o artista começa a explorar linguagens de diferentes povos e nações da África ancestral.

Assim, o artista pode pensar uma identidade e uma afirmação negra na relação, no movimento que entrechoca diversas culturas e identidades, como um rizoma do poeta e filósofo antilhano Édouard Glissant. Vemos, por exemplo, o diálogo com a cultura popular nordestina e o Cinema Novo em seu quadro “O Santo Guerreiro Contra o Dragão da Maldade: Ogum”; com elementos de outras religiões afrodiaspóricas em “Exu-Dambalah”, em que as setas de Exu contornam as serpentes amarelas de Dambalah, loá do vodu haitiano e do tambor de Mina; ou mesmo com os elementos culturais do cristianismo em contração com figuras míticas do candomblé e personagens históricas do movimento negro: “Xangô Crucificado ou O Martírio de Malcolm X”.

Já no título de seus quadros, inclusive, entrecruzam-se diferentes temporalidades. Uma cena que retrata sua casa em Buffalo, Estados Unidos, com sua companheira, Elisa Larkin Nascimento, intitula-se “Primeira Morada de Yemanjá (Filha)”; um companheiro de militância e ativismo contra a discriminação racial é homenageado em “Xangô Rodrigues Alves”; o sociólogo e articulista do Quilombo aparece em “A flecha do Guerreiro Ramos: Oxossi”; o orixá das matas também homenageia um companheiro de escrita e cofundador do grupo La Santa Hermandad de la Orquídea em “Invocação noturna ao poeta Gerardo Mello Mourão: Oxossi”; já a atriz e primeira mulher de Abdias aparece no “Tema para Léa Garcia: Oxunmaré”. Não há a divisão comum ao Ocidente entre o passado e o tempo presente, pois os mitos vivificam os acontecimentos passados. Ao mesmo tempo em que o orixá é um antepassado, ele vive e se revela nas diferentes figuras que estiveram ao lado do artista.

A narrativa mítica, nessa concepção, é coletiva e fala de um todo: “passado de geração a geração, por meio da oralidade, é ele [o passado remoto] que dá o sentido geral da vida”, escreve Prandi. É o que nota Marta Moreno Vega em relação aos quadros de Abdias Nascimento: “as formas, as cores e a organização do espaço, tudo corresponde a um sentido de identidade, espaço e cosmovisão que focaliza o artista como transmissor de valores culturais e tradição. O artista, a comunidade e seu ambiente se unem, diferentemente do artista euro-ocidental cuja preocupação principal é a expressão individual”. Assim, a afirmação do negro e de sua cultura na arte descola os eixos do poder e de compreensão da própria negritude nas Américas, “descentradas dos dilemas branco-europeus de sobrevivência colonial”, nas palavras de Castiel Vitorino.

Ainda na senda de Vitorino, poderíamos ler o projeto artístico de Abdias na contramão de certa agenda nacional de arte, “que passa a defender, comissionar e alimentar a reencenação da dor racial como uma prática revolucionária, antirracista e até mesmo decolonial”, configurando “um novo momento de compra e venda da vida negra”. Afinal, nos quadros de Abdias, a vida negra afirma-se e transborda na cultura de raiz africana em sincretismo com as práticas religiosas afrodiaspóricas no Brasil e nas Américas. Sob a superfície cristalizada da tela, o movimento entre os dois extremos do Atlântico. No entrechoque de diferentes tempos, espaços, culturas e agenciamentos, a negritude aparece como o próprio princípio movente do mundo. Como Exu: a primeira forma criada na origem do mundo – escreve Mestre Didi em Esù.

Terceiro Ato: Sortilégio
Data: 18 de março a 06 de agosto de 2023
Local: Galeria Mata, Instituto Inhotim, Brumadinho (MG)


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