A sós

A sós
Foto: Freestocks/Unsplash

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


Era pandemia em 2020 e ela mal acreditava no que estava vivendo, imaginava que eventos históricos assim estavam enterrados nos livros de história do Ensino Fundamental. Já havia muito mais de 40 dias que ela estava de quarentena. Isolada do mundo, sozinha com seus gatos, mergulhou profundo em sua própria companhia.

 

Nesta noite, resolveu beber aquele Cabernet Sauvignon guardado na discreta adega da sala. Pensou no que comer. Lembrou da receita que a amiga de infância, cozinheira de mão cheia, lhe passara recentemente: abobrinha ao forno. Coisa prática. Coisa rápida. Era o que ela gostava na cozinha. Pôs-se a cozinhar. Um incidente: toda a cebola picada caiu no chão. Como está tudo limpo e neuroticamente desinfetado, ela catou grande parte, lavou e usou. Depois de colocar a travessa no forno aquecido, escolheu uma playlist para acompanhá-la.

 

Em algum canto do mundo, em meio a mais de 8 bilhões de pessoas, uma mulher rega suas plantas ao som do imortal flamenco de Camarón de la Isla e da guitarra de Paco de Lucía, enquanto espera o forno assar sua comida.

 

Será ela a única que resolveu aproveitar a própria companhia nessa noite de sábado? Imagina o que estarão fazendo as mulheres a essa hora mundo afora para se divertirem a sós, enquanto senta-se à cabeceira de sua mesa e sente o perfume da sala, vindo das velas acesas. A cor âmbar do ambiente, o som da guitarra e das palmas a transportavam para memórias indecifráveis. Ao olhar para o vermelho líquido se derramando em sua taça, via-se em outros tempos. Mas não saberia definir quais. Apenas sabia tratar-se de tempos entranhados em tudo que era ela.

 

De repente, um poema de García Lorca veio à sua mente. A imagem é de uma mulher que tinha uma cintura cada vez mais fina enquanto dançava, encantando os catadores de azeitona. Também se lembra dos seus olhos negros, e que seu vestido verde era cheio de babados que reluziam no campo. Quase sente o cheiro de yerba buena e pensa que Tarara é pura sinestesia. Lembrou-se da biblioteca, de estar em pé sobre o banco de madeira para alcançar a pesada e envelhecida antologia do poeta. No meio do corredor, sentada no mesmo banquinho, abriu o livro e leu pela primeira vez o poema. Depois lembrou-se da visita à casa do poeta, de tão charmosa e aquecida, seu quintal virou parque. Foram tantos passos para chegar lá. No caminho, parou naquela vitrine onde para sempre tinha deixado um porta-retrato que nunca mais voltaria a encontrar. Impressionou-se com a memória de um objeto que não chegou a ter, que a marcou por não ter podido comprar e realizar o desejo. Desejos não realizados costumavam trazer consequências, aprendera ela, em teoria e prática. Anos depois daquela caminhada, passou a ter coragem de olhar para os seus. Hoje, nada a alegrava mais do que ter se encorajado.

 

Quantas vidas cabem em uma?, pensou. Camarón se foi, Lorca também. Mas essa luz granada iluminando cinco pontos de sua sala está viva, assim como a lágrima teimosa que escorre do seu olho direito até o nariz. Logo, a do lado esquerdo também desce. Sente o sabor salgado das lágrimas se misturando ao molho de tomate com queijo minas. Bebe um pouco mais do vinho. Pega uma torrada e molha no caldo do seu prato. Saboreia devagar, enquanto ouve um grupo de bailadores dançando. As batidas do cajón parecem bombear o seu coração, batendo no mesmo pulso do instrumento.

 

A música é alegre, diz que caminhando se vai sorrindo. Nesse momento, um olê lhe toma o pensamento. Ela repete o som. Falar sozinha era algo raro. Preferia cantar. Lembrou-se, ao olhar para a taça quase vazia, de novamente enchê-la. Observou o rótulo do vinho, em relevo, a estampa do mapa do Chile, outro lugar que tinha deixado em seu coração grandes memórias. Olhou através da taça cheia, enxergou as luzes das velas, e sentiu emergir um sentimento de segurança.

 

Bebeu um pouco de água, balançou a taça de vinho. De bonina, o líquido se tornava vermelho vivo apontado para a luz incandescente. Ouviu mais uma vez as palmas que a sugavam para o flamenco e pensou que gostaria de aprender a batê-las naquele compasso. Quanto mais sorvia o vermelho líquido, mais tinha consciência da inconsciência. E os acordes da guitarra a guiavam para um lugar tranquilo em si mesma. Não precisava dançar nem cantar, nem comer e nem beber. Só ouvir: En una piedra se acostó, y toda ella era luto. La bandera de España, hecha de sol y sangre. Em bom português, pensou na sua bandeira e no sangue implícito no verde-amarelo. Afastou imediatamente esse pensamento. Apenas tem ouvidos para a alegria e beleza de Rosa María, se ela a quisesse, que feliz seria.

Aiezha Martins, 36, vive em Belo Horizonte, é psicóloga e mestre em psicologia social. Escrevo um blog literário chamado Meu Próprio Lar (meupropriolar.blog), onde cria poemas, prosas, resenhas e textos diversos sobre sua experiência.

 

Deixe o seu comentário

TV Cult